O especismo é a raiz das opressões

A ideia de dominar e explorar o outro não começou com a raça ou com a classe, mas com a espécie

O especismo é a raiz das opressões
Foto: We Animals

A domesticação: o primeiro laboratório de opressão

Se olhamos para a história da humanidade, estruturalmente o especismo surge como primeira opressão. A divisão entre “nós” (humanos) e “eles” (os outros animais) é a base sobre a qual a mentalidade de dominação foi construída e praticada pela primeira vez. Antes de um ser humano oprimir outros humanos, a humanidade já oprimia outras espécies por causa de sua biologia. O especismo precede definições de raça. É uma estrutura de opressão arquetípica, anterior e fundadora. O primeiro colonialismo foi contra os animais, na forma de dominação, apropriação, domesticação. Antes de existir império, rei ou nação, os humanos já praticavam o colonialismo sobre os animais não humanos. A domesticação foi o laboratório onde técnicas de opressão foram testadas e refinadas.

Eles foram submetidos ao controle de reprodução (decidir quem pode procriar, com quem, quando e como), apropriação do corpo e do trabalho (usar a força, leite, ovos, carne, pele e a vida do outro para seu próprio interesse), confinamento e controle territorial (limitar o movimento à cerca, ao curral, à pocilga, à gaiola, à corrente, ao barracão), criação de dependência (moldar uma espécie para que não possa mais viver sem o dominador), aniquilação da cultura e dos comportamentos naturais (suprimir instintos, interesses e substituí-los por obediência) e manipulação genética (impor ao animal uma condição corpórea que reflita interesses humanos e prejuízos não humanos).

A lógica instrumental: ver um ser como recurso

Aprender a ver um ser senciente como um “recurso”, uma “coisa” ou um “meio para um fim” normalizou a lógica instrumental, que mais tarde seria usada contra grupos humanos. O especismo não é um “subproduto” ou um “análogo” de outra opressão, se surge antes como opressão. Acreditar nisso é um anacronismo analítico, é subverter a lógica. Ele não pode ser simplesmente dissolvido dentro de uma análise que desconsidera sua singularidade e posição fundadora entre as opressões. O especismo tem suas próprias dinâmicas, história e vítimas. O colonialismo humano também é uma aplicação posterior de um modelo já bem-sucedido em corpos não humanos. Logo, o combate ao especismo por meio do veganismo é, em si mesmo, uma luta anticolonial – a luta contra a colonização dos corpos e das vidas dos animais não humanos.

A crença de que os animais não humanos devem estar em segundo plano porque “temos questões mais importantes com que nos preocuparmos” reflete uma atuação antropocêntrica contra práticas de dominação e que ignora a antiguidade do especismo como primeira dominação sistêmica. E ignora-se que o próprio antropocentrismo é fortalecido pelos “ismos” opressivos. Isso significa que o antropocentrismo – a crença na superioridade humana e no direito de dominar outros animais e a natureza – é a ideologia-raiz de todas as outras ideologias de dominação.

Antropocentrismo: a ideologia-raiz de todas as dominações

Colonialismo, racismo, sexismo e classismo são, em última análise, “antropocentrismos internalizados”. Eles aplicam a lógica do “dominar o outro inferior” a subgrupos dentro da própria espécie humana. Portanto, o combate ao especismo não é “apenas mais uma causa”. É atacar a raiz do problema. É desarmar a primeira arma, desmontar o primeiro modelo.

Equivocado também seria tratar o combate ao especismo como uma questão de “deveres indiretos”, acreditando que a opressão contra os animais não humanos precisa ser combatida porque reconhecemos nela uma influência em opressões humanas. Isso teria o mesmo efeito de defender que não devemos causar mal aos animais porque isso pode levar humanos a prejudicarem outros humanos.

Fazer isso seria ignorar sobre o que se visa lançar luz – a reprodução do antropocentrismo (que também influenciou e determinou os rumos do colonialismo), negando aos animais uma consideração pelo que é inerente a eles e não pelo que nos incomoda como “prejuízo humano”.

Logo, uma opressão deve ser combatida porque é essencialmente opressão e não por uma questão de correlação – porque a força não deve surgir a partir da correlação, mas do que a precede em sua própria natureza específica e nocivamente singular. Do contrário, opera-se um antropocentrismo residual mesmo em movimentos que se propõem a combater opressões.

Os primeiros e mais numerosos colonizados 

Antes de humanos oprimirem outros humanos, a humanidade já oprimia outras espécies. A domesticação foi o primeiro laboratório de controle de corpos, territórios e reprodução – o protótipo de todos os colonialismos que se seguiram. Tratar um ser senciente como um “recurso” é a lógica instrumental primordial, cujas técnicas foram depois repensadas e adaptadas para aplicação a grupos humanos subjugados. Essa não é uma analogia: é a genealogia da dominação.

Ainda assim, tanto a moralidade convencional quanto a de muitos progressistas ainda mantêm os humanos no topo, ignorando os primeiros e mais numerosos colonizados – não humanos, e que, como parte do desenvolvimento do especismo, ainda são os mais prejudicados e com a maior participação da população global em comparação a qualquer outro tipo de opressão, se consideramos pelo menos o consumo baseado na exploração animal (carne, leite, ovos, etc).

Por isso, o veganismo, em seu cerne de oposição ao uso de animais para fins no consumo e em outros interesses humanos, é um projeto de desmontar a primeira e mais fundamental das opressões, já que nossa “ascensão” civilizatória foi construída sobre as “costas” de espécies domesticadas. Questionar isso é questionar o próprio alicerce de nossa autodefinição como “civilizados”.

Uma decolonialidade mais justa passa então pela consideração do mal causado contra os animais não humanos – não podendo o combate à opressão animal ser meramente um anexo da luta anticolonial humana ou de qualquer outra luta humana, considerando sua gravidade, anterioridade e transversalidade. Afinal, essa é a forma de colonialismo que teve maior impacto numérico, geográfico e envolveu horizontes que não podemos equivocadamente limitar como ocidentais ou ocidentalizados, se foi adotada e normalizada no mundo todo e por povos tão distintos.

O especismo é um colonialismo

A dominação mais arraigada e universal

A opressão animal (não humana) é um fenômeno pan-humano e pré-histórico. Enquanto o colonialismo humano (tal como o entendemos classicamente e normalmente pensamos primeiro no colonialismo europeu) tem epicentros e rotas específicas, a domesticação de animais surgiu de forma independente em múltiplos berços de civilização. Na Mesopotâmia, ovelhas, cabras e bovinos; na Ásia Oriental, porcos e aves; nos Andes, lhamas e alpacas; e no subcontinente indiano, zebus; apenas para citar alguns exemplos. Isso significa que a lógica de dominação sobre os animais não humanos foi “descoberta” e implementada repetidamente por sociedades que não tinham contato entre si. Ela é, portanto, uma estrutura de poder muito mais arraigada e universal do que qualquer sistema de opressão entre humanos.

O que fazemos com os animais exige compreender como o colonialismo operou a partir do especismo como projeto de dominação e apropriação. Alguém pode dizer que não faz sentido associar o que é feito com os animais não humanos com o colonialismo, mas pelos motivos que apresentei antes e pelos que ainda trarei, ignorar isso é reproduzir uma visão antropocêntrica tão abraçada pelo colonialismo que se visa criticar. Fazer isso é se apoiar na crença de que nossa categoria (“humana”) é moralmente tão especial que até mesmo nossas ferramentas conceituais para descrever a opressão não podem ser compartilhadas com outras vítimas.

O protótipo da dominação: táticas coloniais reaplicadas

O colonialismo humano cercou terras, criou reservas, guetos e plantations. O colonialismo sobre os animais criou pastos cercados, currais, gaiolas e tanques de aquicultura. A liberdade de movimento é suprimida. O colonialismo humano buscou apagar línguas, religiões, tradições e modos de conhecimento. O colonialismo sobre os animais suprimiu comportamentos naturais, instintos, estruturas sociais complexas e a transmissão cultural própria de cada espécie (o que chamamos hoje de “culturas animais”). O objetivo foi substituir a autonomia pela obediência.

O colonialismo humano escravizou corpos para extrair trabalho e frequentemente controlou a reprodução. O colonialismo sobre os animais  já havia se apropriado de corpos não humanos para carne, leite, ovos, pele, força, etc; e a reprodução é controlada por seleção genética, inseminação artificial e domínio sobre a prole. O colonialismo desestruturou economias locais e criou dependência do colonizador. A domesticação criou espécies que, como consequência genética e comportamental, não podem mais viver sem a intervenção humana.

A violência sem metáfora

Ambos os colonialismos veem o colonizado como um recurso a ser explorado, um “meio para um fim”. Mas o peso literal que isso tem e ainda tem para os animais não humanos é diferente, porque mesmo em muitos estudos sobre o colonialismo as apropriações de termos em relação à realidade dos animais não humanos, como falar em “ser tratado como animal”, leva em conta o que é reprovável sobre o humano, mas não sobre o não humano. E muitos usos que têm efeito metafórico compõem ainda a realidade ordinária desses animais – e uma realidade que está crescendo, não diminuindo. Ou seja, se comunica a profundidade do desprezo e da desumanização que um grupo sofre ou sofreu construindo uma ideia de horror que induz a uma conclusão de ser “rebaixado à condição de um animal”. O ponto de referência, o ápice da opressão, é ser tratado como um não humano. Mas para o porco, frango ou vaca, por exemplo, não há metáfora. Mesmo hoje, a violência não é retórica; é física, imediata e total. E pior, vista como aceitável pela grande maioria da população, incluindo aqueles que combatem outras opressões e que defendem a decolonialidade.

A lógica nua e crua: dominação por dominação

O colonialismo sobre os animais surgiu sem mediação, sem máscara. Não veio acompanhado de justificativas sobre “levar a civilização” ou “salvar almas”. A lógica é nua e crua: dominação por dominação, uso por uso. O corpo do colonizado é o território, o recurso e o produto final. A violência é o método, mas também o objetivo. A violência não é apenas o meio para subjugar uma resistência; ela é intrínseca ao propósito final, que é o consumo e produtificação do próprio corpo colonizado.

O colonialismo no seu prato

A maioria dos humanos está diretamente envolvida, financiando e consumindo os frutos desse colonialismo específico todos os dias. É muito mais fácil se indignar com um colonialismo histórico ou até mesmo geograficamente distante do que com aquele que ainda apoiamos em nossas práticas diárias de consumo.

Veganismo como projeto decolonial

É preciso reconciliar duas ideias que normalmente mantemos em gavetas separadas: “especismo” (uma questão ética-política) e “colonialismo” (uma questão histórica-política). Se aceitamos que a dominação e domesticação foram os primeiros atos coloniais, então o veganismo e a ética antiespecista são também um projeto decolonial – uma decolonialidade ainda inconsiderada em sua dimensão global e quase universal de impacto. Logo, é uma rejeição da premissa de que existe um “centro” (o humano) com direito de governar a “periferia” (o não humano).

Assim como a decolonialidade humana busca desmontar estruturas de pensamento e poder impostas pelo colonizador, a prática antiespecista busca desmontar a estrutura que coloca o animal não humano como propriedade e recurso. O objetivo final da libertação animal não é “gerir melhor” a exploração, mas reconhecer a agência, a senciência e o direito à existência própria dos animais. É sobre devolver a eles o controle sobre seus próprios corpos e vidas em um mundo profundamente antropizado, bem como não gerar vidas não humanas para fins exploratórios humanos. E sabemos que a maioria dos animais trazidos ao mundo pelo ser humano o são por interesse de consumo e instrumentalização.

Tanto a decolonialidade quanto o antiespecismo questionam uma ordem que foi tão naturalizada que se tornou invisível. Para muitos, a ideia de que um boi ou uma galinha não são “coisas” para nosso uso é tão estranha quanto foi a ideia de desmantelar o imperialismo. Longe de ser um exagero, trazer os animais não humanos para o centro da discussão decolonial é um ato de rigor analítico e coerência ética. É levar a sério a ideia de que a opressão é um fenômeno com padrões análogos, e que a primeira e maior vítima merece nossa ampla consideração.

Ver a inclusão dos animais não humanos na esfera moral e política como uma “diluição” da luta contra a opressão é um erro. Na verdade, ocorre o contrário – é uma radicalização. Mas radicalizar significa ir à raiz (radix), e a raiz é desconfortável. A luta antiespecista emerge não como “mais uma” causa, mas como um projeto fundacional para desconstruir a própria mentalidade de dominação. É um convite para repensarmos tudo, desde nossa relação mais básica com o mundo vivo até as definições mais profundas de justiça e civilização. E isso também passa por não ignorar que o primeiro colonialismo foi praticado contra os animais não humanos.

Observações

A maioria das pessoas está diretamente envolvida neste sistema todos os dias, através do que comem, vestem e consomem. É o colonialismo mais próximo e mais normalizado.

O antropocentrismo – a crença na superioridade humana e no direito de dominar outros animais e a natureza – é a ideologia-raiz que sustenta todas as outras ideologias de dominação. Se o especismo é a primeira opressão prática, o antropocentrismo é o seu alicerce ideológico.

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Jornalista (MTB: 10612/PR), mestre em Estudos Culturais (UFMS) com pesquisa com foco em veganismo e fundador da Vegazeta.

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