O leite de clemência

Arte: Milk, de Dana Ellyn

Como fazia todos os dias, Eugênio acordou bem cedo no sábado para ordenhar Filomena, uma vaca baixinha que aprendeu, por força do tempo, a aceitar o seu próprio destino – servir como fonte de renda para um produtor rural.

Eugênio já não amarrava mais a corda no pescoço de Filomena, porque há mais de um ano ela sabia o que precisava ser feito. Sempre que o galo cantava sobre uma guarita que antes serviu como morada para um João-de-Barro, ela se levantava e caminhava em direção à porteira do pequeno curral.

Ficava imóvel, com olhos baixos e orelhas deitadas, às vezes esfregando suavemente os cascos na terra, esperando a chegada do patrão. Eugênio sabia que era hora da ordenha, não apenas por causa da balbúrdia do galo, mas também porque o sino no pescoço de Filomena revelava que ela estava pronta para o serviço.

“Bora tirar esse leite das tetas, Filó!”, dizia Eugênio sorridente, sem titubear. A vaca não reagia. Só vez ou outra que emitia gemido prolongado e langoroso que ninguém entendia; nem Marcolino, o único médico veterinário do povoado. “Deve ser falta de algum nutriente. Vamos incrementar a alimentação dela”, sugeriu numa manhã árida.

Um dia, Filomena parou de produzir leite e ninguém entendeu o motivo. Ela era considerada um dos animais mais saudáveis e invejados da colônia, ajudando a garantir não apenas o sustento da família de Eugênio, como também a alimentação de seus dois filhos.

— Que diabos eu vou fazer agora?

— Chame Seu Marcolino de novo, pai…

— Ah! Mas já faz mais de uma semana que a danada não dá nem uma caneca de leite, e o mais estranho de tudo é que ela tá com as tetas cheias.

— Chame o homem, pai! Ele vai saber o que fazer.

— Não sei se compensa, o tratamento deve ser caro.

— Não custa ver se vale a pena.

Seguindo a recomendação do filho, Eugênio chamou Marcolino. Ao contrário do que imaginava, o homem disse que não havia nada que pudesse ser feito, a não ser esperar. “Essa vaca é saudável. Não tem problema nenhum. Deve ser só teimosia, só que uma teimosia que nunca vi igual. Geniosa essa vaca, mais do que o senhor”, ironizou o veterinário às gargalhadas.

Na segunda semana, Filomena não permitiu que nenhuma gota fosse extraída de seus úberes. Não saía nada durante a tentativa de ordenha. Quando Eugênio massageava o volume, ele berrava enraivecido ao sentir o leite no interior do animal. Estava fora do alcance de seu balde de lata.

— Eu que te criei, sua lazarenta. Como você faz isso comigo?

— Só não te bato aqui agora por consideração – ameaçou com a mão direita levantada em posição de golpe.

A vaca inclinou a cabeça em direção ao solo arenoso e ignorou a ameaça, como se entendesse, embora não se importasse. Filomena parou de produzir leite quando seu último filho desapareceu, vendido para um matadouro. Eugênio não queria o bezerro disputando o leite que “deveria ser somente dele e de seus filhos”.

— Eu que alimento a infeliz, então tudo que ela oferece me pertence.

Na terceira semana, o galo não cantou e Filomena não se levantou. Encolerizado, Eugênio correu até o galo e o derrubou de cima da guarita com um tapa certeiro nas ventas. O bicho se apressou em direção aos pinheirais e, miúdo, desapareceu sob o matagal.

Depois foi a vez de Filomena ser punida. Ele amarrou uma corda no pescoço da vaca e tentou arrastá-la para o centro do curral. Ela resistiu. Não queria sair de jeito nenhum. Com a ajuda dos dois filhos, a deitou sobre a areia branca e pediu que Matias, o mais velho, buscasse um machado pendurado no fundo do celeiro.

O rapaz correu e voltou empunhando a ferramenta. Quando Eugênio ameaçou dar o primeiro golpe, a vaca gemeu e se contorceu na terra, levantando, com os cascos, uma cortina tão densa de poeira que ele e os filhos engasgaram. Logo a vaca cansou, e a poeira se dissipou. Havia sangue no chão, colorindo os riscos no solo, que ganhavam formas de vasos sanguíneos. Tão opaco quanto vívido, o líquido vermelho jorrava das tetas de Filomena.

Com o corpo exalando odor acre de terra e sangue, ela observou assustada os três. Mesmo com olhos fumegantes e muita vontade de extravasar a fúria que o dominava, Eugênio desistiu de matá-la naquele dia. Entrou em casa acompanhado dos filhos que não ousaram dizer palavra. “Se ela não der leite nos próximos dias, a gente mata”, avisou com voz oca e pertinaz. Matias e Mateus balançaram a cabeça em concordância, sem arriscar comentário.

Ao anoitecer, João dos Cascos visitou a família e perguntou se Eugênio não queria vender Filomena. Ofereceu inclusive a sua propriedade, sua única fonte de renda, em troca da vaca. Achando aquilo um absurdo, Eugênio declinou a proposta.

— Não sei qual é a sua intenção com essa oferta descabida, mas saiba que Filomena não está à venda. É herança de família.

— O senhor me perdoe a intromissão. É que preciso de uma vaca como a sua.

— Essa tá doente e não vai ter serventia nenhuma pro senhor.

— Não tem problema. Me viro do meu jeito.

— Não adianta, não quero e não vou vender. Retire-se! Vá daqui!

Na quarta semana, assim que Eugênio acordou, ele viu através da janela o galo cantando. Filomena mantinha a cabeça escorada em uma das tábuas da porteira, e o sininho vibrava preso ao pescoço. Diante das patas, havia três baldes de leite, um leite diferente, singular, como ninguém daquela casa jamais experimentou.

— Tem o gosto do céu! Que maravilha, Filó! Hoje meu coração está em paz. Me perdoe por tudo que fiz. Por favor, aceite minhas desculpas.

A vaca o observou, recuou e deitou em um canto onde o sol matutino aquecia uma porção de sua pele branca como o leite que Eugênio consumiu. Por três anos, todos os dias no mesmo horário, Eugênio, Matias ou Mateus recolheram os três baldes de leite. Até que numa manhã, Filomena não levantou e o galo não cantou. Não havia leite nem balde. Só um animal que parecia preparado para encarar o destino. “Sem leite, sem vida”.

Antes do pôr do sol, Eugênio retornou com o machado. Absorto em ódio, cuspiu um naco de fumo em um pedaço de pasto e ignorou tudo à sua volta, mirando a vaca teimosa “que já não merecia viver, não merecia sua compaixão”. Rodeou o animal e fez círculo no chão com a lâmina, demarcando a área do abate. Antecipando o primeiro golpe, Filomena fechou os olhos e deitou a cabeça na grama, alongando o pescoço, talvez prevendo a própria decapitação. Eugênio estava tão furioso que, com mãos trêmulas, errou o primeiro golpe.

No mesmo instante, um rapaz bateu palmas na entrada do sítio, alegando que tinha uma entrega. Eugênio se aproximou com olhar suspeitoso e cumprimentou o jovem que se apresentou como Bernardo.

— Vim trazer uma carta ditada por meu pai João dos Cascos e uma garrafa de leite. Ele faleceu ontem, mas antes me fez prometer que eu viria visitá-lo.

Bernardo abriu a garrafa, tirou um copinho da mochila e insistiu que o homem experimentasse.

— É coisa boa, o senhor não se preocupe.

Eugênio tomou tudo em um gole. Assustado e boquiaberto, deixou o copinho cair de sua mão, se chocando contra o chão.

— Onde você conseguiu isso?

— Meu pai que inventou. É leite de clemência. Uma receita familiar. Não vem de bicho nenhum, vem da santidade da natureza que da gente exige muito pouco. O senhor gostou?

— Sim…é muito bom.

Quando abriu a carta, Eugênio viu que havia uma receita com todos os detalhes do preparo do leite de clemência, além de algumas observações e um pedido:

— Durante três anos, o senhor achou que seus filhos estavam ordenhando a Filomena, e eles pensavam o mesmo do senhor. E nenhum de vocês percebeu que aquele leite não era de vaca. O senhor sabe por que? Porque vocês precisavam do leite de clemência mais do que daquilo que julgavam mais importante. O que parecia essencial era somente distração. E aquele, meu senhor, era o único leite que todo ser humano deveria beber depois do desmame. Não, ele não é igual ao leite de vaca. É bem diferente. E quando pensamos que sim é porque já não somos quem éramos. Sei também que o senhor se desfez de quase todos os animais de seu sítio, mantendo somente o galo e a vaca Filomena. Saiba que aquela a quem chama ‘carinhosamente’ de Filó, assim como todos os animais, tem sua própria vida e dor. Ou o senhor pensou na vaca quando mandou os filhos dela para o matadouro? Como exigir que um animal não reaja diante do sofrimento dos seus? Eles não falam, mas seus corpos sim. Diante disso, faço duas sugestões. Que o senhor aceite minha receita e liberte Filomena ou devolva a carta ao meu filho e entregue-se aos enganosos prazeres da soberba.

Eugênio levantou os olhos, deu uma olhadela em Filomena e mirou Bernardo. Sem dizer nada, caminhou até o curral e balbuciou:

— Que um dia você me perdoe, ou não, porque aquele que vive para si mesmo pode ser que não viva para mais ninguém.

Amuada em um canto, Filó se levantou e seguiu em direção a Bernardo, acompanhada pelo galo. Quando a porteira se abriu, o último desejo se cumpriu.

Jornalista e especialista em jornalismo cultural, histórico e literário (MTB: 10612/PR)

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