O novilho que não virou comida

Pintura: Aimée Hoover

Na ausência do que comer, o escanifrado partiu com um novilho. “Onde vai sacrificá-lo?” “Não vou.” “Não?” “Não.” “E o que pretende comer, se tem fome e aqui perto não há o que você possa fazer?”

“Atravessarei com o novilho.” Riu do escanifrado e chamou-lhe de néscio. “Libertei esta criatura, amarrada a uma árvore seca onde o sol traria a qualquer vida consciente raio de alucinação e dor da condenação.”

“Agora condena a si mesmo por um animal que nem é de sua espécie? Onde mora tal inteligência?” “Se fosse para matá-lo, o teria deixado lá, que a prisão e a falta de vida no chão dariam cabo de sua miséria.”

“Pensei que tivesse compaixão, e quisesse matá-lo pela própria mão, e recompensaria um fim menor com um prazer maior, que é justo em sua razão.”

“E isso é compaixão? Ou apoucamento da noção? Sim, tenho fome, mas tem ele também. Se sacrifico quem está comigo no primeiro estágio duma desagradável situação, que isso diz sobre mim e minha intenção?”

“Se te fortalece agora, a viagem é menos dolorosa. Mate o novilho que o ajudo a descarná-lo e assá-lo. Lá embaixo, temos fogueira pronta, que nunca se apaga.”

O escanifrado agradeceu e recusou. Foi embora ouvindo maledicências. “Andamos lado a lado, e seu passo é meu passo, e se na sua vontade de viver não posso acreditar, que faço senão te atraiçoar?”, disse ao novilho.

Pelo caminho, encontraram mais três homens que tentaram convencê-lo a abatê-lo. Não sabia se o novilho entendia, mas o escanifrado entendia. “Não posso afirmar que não compreende as intenções dos que o desejam sem vida, que de barriga cheia ainda têm ânsia pelo seu fim. Como são gulosos!”

Adiante, viu muita fumaça e cheiro de carne. “Não te ofereço carne, mas ofereço o espaço para que sepulte seu companheiro, que será seu e nosso alimento. Esta criatura é um fardo, mate-a e seja recompensado pelo esforço de salvá-la.”

“Como posso tê-la salvado se mato-a agora? Não a teria salvado, só adiado. E pior seria, porque a mim chamaria de malícia.” Continuou seguindo em frente e, quando já não aguentavam, encontrou pasto livre e comida não deitada pela morte. “É aqui…o que vive em mim.”

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Jornalista e especialista em jornalismo cultural, histórico e literário (MTB: 10612/PR)

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