Por que a oferta de produtos veganos não transformará a realidade dos animais

É um erro subestimar a motivação cultural nas relações de consumo

Foto: Robert Sud

A defesa de que a mera oferta de produtos veganos transformará a realidade dos animais é equivocada. Acreditar nisso é ignorar a motivação cultural que existe nas relações de consumo.

Pessoas que hoje consomem esses produtos não os consomem porque os encontram pela primeira vez no supermercado, por exemplo, e decidem comprá-los. Isso ocorre porque elas já buscam esses produtos – portanto já têm uma motivação que não surge com esses produtos e sim com um interesse que precede esses produtos.

Há quem acredite que basta oferecer produtos para que mudanças que transformem a realidade dos animais ocorram. Mas não conheço nenhuma pessoa que seja consumidora frequente de carne que trocaria um alimento de origem animal por um alimento de origem vegetal se ela já não tiver uma motivação para isso.

É subestimar os interesses do consumidor crer que ele tem uma relação de consumo tão passiva. Para pessoas que não querem mudar seus hábitos, e que são muitas, não vai ser uma maior oferta de produtos – ou nem mesmo preços equivalentes ou até mais baixos em comparação a produtos animais – que levará a uma mudança.

E sejamos honestos, a maioria dos produtos veganos, principalmente alimentícios, são atrativos para quem já mudou ou tem predisposição a alguma mudança – mas não tem grande apelo a quem não quer mudar, que hoje representa a grande maioria. A ideia de que disponibilidade + preço transformará a realidade por si só ignora fatores que envolvem cultura e identidade, hábitos profundamente enraizados e a dimensão fortemente estabelecida do prazer e da satisfação.

Em relação a comportamentos de consumo, a Hierarquia de Necessidades de Maslow e a Teoria da Ação Racional já destacavam que crenças e valores são determinantes nas escolhas. Estudos como os de Bordieu sobre habitus também reforçam a conclusão de que humanos não apenas substituem produtos quando surgem opções – porque há símbolos sociais que justificam escolhas.

Tudo isso converge para a conclusão de que a “mera disponibilidade como transformadora” é subestimar o que motiva as pessoas nas relações de consumo. Não imagino uma pessoa para quem comer carne é parte do sentido “diário de se alimentar” trocando sua carne por uma carne vegetal sem uma forte motivação que precede a disponibilidade desse produto.

Ela não muda com o produto, ela muda com o que o antecede, já que ninguém se livra dos símbolos que constituem essa relação sem a emergência de símbolos mais fortes vitalizando uma nova conexão.

Nenhum produto vegano compete com isso sem uma desconstrução prévia. A resistência em experimentar produtos veganos, e que é tão comum e envolve tantas pessoas, expõe o quanto essa dimensão de que o mais importante é o que precede o produto não pode ser negligenciada.

A rejeição antecede até a experiência – a negação de que vale a pena experimentar. O “não querer mesmo sem saber” ainda é predominantemente comum em relação a produtos veganos porque é outro reflexo do que só poder ser superado no campo da cultura – da ressignificação e renovação de percepções e valores que dependem do que ocorre também fora da esfera do consumo.

Todos nós temos no consumo uma expressão de quem somos. Por isso, o consumo, como campo de resistência, é de onde parte tanto a aceitação quanto a rejeição. O consumo nunca é apenas um ato prático. Cada escolha alimentar carrega em si uma declaração de valores, seja consciente ou não.

Se a grande maioria dos consumidores hoje não tem interesse em produtos veganos, depositar toda a confiança na esperança de um futuro em que esses produtos custarão menos – e a maioria automaticamente substituirá produtos de origem animal por produtos de origem vegetal apenas por essa razão – é ignorar todos os outros fatores em relação que motivam escolhas de consumo.

Também é reducionista crer que a única barreira é o preço. As pessoas mudam com motivações que não envolvem somente uma lógica econômica. Oferecer produtos veganos a preços baixos é atrativo hoje para quem já consome esses produtos e gosta deles. É só ver como quando há uma promoção com grande redução de preços desses produtos no supermercado, isso não costuma atrair pessoas que não têm um prévio interesse por esse tipo de produto.

A lógica econômica pode ser um impulso, mas o que determina é o que ocorre no campo da cultura – o que representa para as pessoas o que está sendo oferecido. Além disso, uma motivação passageira, que é tão comum também, expõe ainda mais a fragilidade desse tipo de consumo como “transformador” – o que também externa como o que é determinante está no campo da cultura, não da “mera disponibilidade”.

Afinal, o que significa para alguém que consome o que se consome? Esse é o ponto a ser refletido. Até mesmo o exercício de aceitar experimentar algo de origem vegetal e que normalmente se consome na versão de origem animal depende da representação dessa ação na consciência de alguém.

Claro que podemos dizer que isso pode ser feito de forma “furtiva”, sem que a pessoa saiba que não é de origem animal, mas isso não significa que uma pessoa que tem preferência por produtos de origem animal transformará seus hábitos apenas porque gostou de algo que experimentou. Grandes mudanças dependem de transformações consistentes, não de reações positivas casuais.

Hoje há também a ilusão do “produto perfeito” – a crença de que é preciso apenas oferecer um produto idêntico em sabor, textura e preço para converter consumidores, ainda que esse reconhecimento seja subjetivo e desconsidere o fator simbólico: para quem vê o consumo de carne como “natural” ou “essencial”, nenhum substituto será legítimo, pois a questão não é técnica, mas cultural. Isso vale também para outros produtos.

Além disso, para muitas pessoas, as novas carnes vegetais, por exemplo, ainda hoje tendem a ser vistas também como “artificiais”, mesmo quando são baseadas em vegetais e ingredientes mais naturais. Isso também é um reflexo da percepção cultural que se tem da carne como tradição – e vale também para outros produtos, não somente carnes vegetais.

Empresas de produtos veganos ou plant-based gostam de usar a narrativa de que são disruptivas, mas disruptivo é o que ocorre no campo da cultura. A verdadeira disrupção não virá de produtos em gôndolas ou congeladores, mas de transformações culturais que precedem os produtos – já que até mesmo esse interesse depende da superação da ainda comum essencialização de produtos de origem animal. Qualquer disposição de interesse e supressão de resistência depende, no mínimo, de algum tipo de inclinação. Ademais, disrupção exige ruptura com o sistema vigente. Isso só é possível com sólidas e extensivas mudanças de consumo que dependem de uma disputa no campo da cultura.

E produtos nichados – logo voltados a uma minoria de consumidores – não favorecem grandes transformações. Problematizo isso porque um consumo nichado não gera um impacto relevante ao veganismo, já que não desafia a estrutura dominante. E como apontei antes, não é somente sobre preço, mas também sobre identificação.

Qualidade também é algo extremamente subjetivo porque também perpassa a cultura, a disposição em relação a algo. A “qualidade” de um produto vegano não é um problema técnico, mas cultural; não é um conceito objetivo, mas uma construção profundamente influenciada por valores culturais, expectativas e identidade.

Enquanto se alimentar de animais for visto como natural, desejável ou identitário, até os melhores substitutos serão rejeitados por muitos que não querem mudanças. Ademais, é um erro ignorar que o julgamento de qualidade muitas vezes precede o consumo – o que só reforça a importância de uma grande motivação.

Melhorar produtos também é insuficiente sem mudar mentalidades – o que requer engajamento no campo do ativismo, educação e política. Do contrário, determinados consumos só serão praticados por quem já está aberto a eles. E o fato de o consumo de produtos de origem animal estar aumentando e haver uma grande maioria da população desinteressada em abdicar deles reflete o quanto a realidade é problemática.

A luta hoje deve ser pelo estímulo e fortalecimento de motivações que levem a mudanças que não sejam transitórias ou efêmeras – porque experimentar, já foi provado a partir do exemplo de diversas campanhas, pouco significa mudar.

Se queremos uma norma cultural em que animais não sejam vistos como fins no consumo, é preciso fazer muito mais. Se não há pessoas o suficiente contribuindo para a redução do consumo de produtos de origem animal, é preciso encontrar meios de envolvê-las, e sem ignorar que fracas motivações levarão a fracos resultados.

Observações

Efeito rebound: O aumento do consumo de produtos veganos por quem já é vegano ou “pelo menos flexitariano” não está reduzindo o consumo de carne – apenas segmentando o mercado.

Nem todas as empresas que oferecem produtos veganos têm interesse em oferecer produtos “não nichados”, principalmente quando têm como foco as classes sociais com maior poder aquisitivo – o que, dependendo do alcance obtido por meio de estratégias de marketing, pode favorecer uma ideia de um “consumo vegano” distante da maioria. Isso pode ser usado negativamente para fortalecer narrativas do “veganismo como inacessível”.

No Brasil, mesmo com a última alta do preço da carne, o consumo não caiu proporcionalmente. Muitas pessoas optaram por consumir carnes mais baratas ou por outro tipo de proteína animal (ovo), mas não buscaram alternativas vegetais. Isso já diz muito sobre a urgência de apresentar motivações que justifiquem essa consideração. Jamais considerar algo de origem não animal como algo que torna desnecessário o que é de origem animal é um forte elemento para reflexão.

Normalmente, o que leva alguém a não consumir alimentos de origem animal, por exemplo, se relaciona a um alinhamento a novos valores, rompimento com um sistema ou realidade da qual se torna crítico e o reconhecimento da importância de uma conexão com novas práticas de consumo.

Quando só um pequeno grupo consome produtos veganos, isso reforça a ideia de que não são opções universais.

Não basta competir no campo técnico, é preciso disputar o significado por trás do consumo.

Para que políticas públicas (impostos sobre carne, fim de subsídios à pecuária, defesa de subsídios para opções vegetais) ou mudanças na indústria (restaurantes e escolas adotando opções veganas como padrão) se concretizem, é preciso massa crítica.

Enquanto uma minoria abdicar ou reduzir o consumo de alimentos de origem animal, isso não resultará em transformações estruturais.

Por que a rejeição antecede a experiência?

Teoria do Habitus (Bourdieu)

Nossas escolhas alimentares são disposições internalizadas desde a infância – comer carne é um ato tão naturalizado que alternativas são vistas como “antinaturais”, mesmo sem contato prévio. Ex.: Uma criança que cresce ouvindo “precisamos de carne para sermos fortes” levará essa crença para a vida adulta como um fato óbvio, não como uma escolha que surge como imposição culturalizada e que depende de impor algo aos animais.

Viés de status quo

O cérebro humano prefere o conhecido, mesmo que inferior, ao “risco” do novo. Estudos mostram que pessoas tendem a superestimar o gosto de alimentos que já conhecem e subestimar os desconhecidos – antes mesmo de experimentá-los.

Consumo nichado não gera disrupção

Produtos veganos ainda são majoritariamente consumidos por grupos com valores prévios. Isso não desafia a estrutura dominante — apenas cria um mercado paralelo. Impacto real exige mudança cultural massiva, não apenas oferta.

E os supermercados também reproduzem a lógica de nicho quando criam seções de produtos veganos. É como dizer: “Aqui estão os produtos para veganos”.

Qualidade é uma construção cultural

O julgamento de “qualidade” envolve expectativas subjetivas moldadas por valores. Enquanto o consumo animal for visto como “superior” ou “autêntico”, até os melhores substitutos serão percebidos como inferiores.

A batalha é contra a rejeição pré-consciente

Não adianta apenas oferecer alternativas – é preciso desarmar os mecanismos culturais que bloqueiam a experimentação.

  • O consumo é um ato identitário, não apenas utilitário. Comer carne, por exemplo, está ligado a rituais sociais, afetos (como a “nostalgia” do churrasco em família) e até a noções de masculinidade ou status.
  • A rejeição antecede a experiência. Muitas pessoas nem sequer experimentam produtos veganos porque associam sua adoção a uma perda de prazer, identidade ou pertencimento a um grupo.
  •  A barreira não é técnica, mas simbólica. Para quem vê a carne como “natural” ou “essencial”, nenhum substituto será legítimo, pois a resistência é ideológica.
  • A artificialidade é um preconceito cultural. Mesmo produtos feitos de ingredientes naturais são vistos como “falsos” porque desafiam a norma cultural estabelecida.

 

Produtos veganos hoje são majoritariamente consumidos por:

  • Veganos/vegetarianos/quem não come carne (que já têm motivação ética);
  • Consumidores com restrições alimentares (que têm problemas de saúde);
  • “Flexitarianos” curiosos (que experimentam, mas sem compromisso).
    Isso cria um ciclo vicioso, porque atrai quem já está convencido, não tendo impacto na resistência cultural da maioria.

 

A disponibilidade de produtos veganos é necessária, mas insuficiente. A verdadeira disrupção requer: enfrentar a cultura dominante, criar motivações fortes e agir em todas as esferas (educação, política e mídia) para desnaturalizar a exploração animal.

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Jornalista (MTB: 10612/PR), mestre em Estudos Culturais (UFMS) com pesquisa com foco em veganismo e fundador da Vegazeta.

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