O livro “Contos Peculiares”, do escritor estadunidense Ransom Riggs, é considerado um livro dentro de livros, já que surgiu a partir da série “O Lar da Srta. Peregrine para Crianças Peculiares”. Como pesquiso sobre direitos animais, vegetarianismo e veganismo na literatura, dos dez contos que fluem com facilidade e fazem o leitor mergulhar em um universo quimérico de possibilidades e impossibilidades, um chamou-me mais a atenção. É a história de um jovem bastante sensível que reconhece o direito à vida de todas as criaturas. Por isso, recusa-se a comê-los, explorá-los ou puni-los, mesmo sendo filho de um fazendeiro.
Intitulado “O Gafanhoto”, o conto começa narrando a história de Edvard, um homem que deixou a Noruega em busca de prosperidade nos Estados Unidos. Ele passou por tantas dificuldades no passado que decidiu dedicar-se completamente a uma fazenda que comprou no Território de Dakota, na região setentrional da Luisiana.
Recordando-se da experiência vivida por um amigo que se apaixonou, casou, teve filhos e vivia na pobreza, Edvard evitava relacionamentos. Porém, como sentimentos independem de razão ou mesmo querer, o norueguês se apaixonou, casou e mais tarde teve um filho. A criança nasceu com um coração tão grande que um lado do peito era perceptivelmente maior que o outro.
Mas a felicidade gerada pelo nascimento do filho, que trouxe muitas expectativas a Edvard, chegou ao fim quando a esposa fragilizada acabou falecendo após o parto. Tendo de criar o menino sozinho, o fazendeiro sentiu raiva da criança por ela ser especial – “estranha” e delicada.
Mesmo ciente de que o menino não tinha culpa da morte da esposa, todo o amor de Edvard transfigurou-se em amargura. Nem as semelhanças físicas dos dois sensibilizaram o homem, incomodado por ter um filho com coração tão imenso que se apaixonava facilmente:
“Aos sete anos, tinha pedido em casamento uma colega de turma, uma vizinha e a organista da igreja, quinze anos mais velha. Se um pássaro por acaso caísse do céu, Ollie passava dias e dias chorando. Quando se deu conta de que a carne das refeições vinha de animais, recusou-se a comer aquilo novamente. O garoto por dentro era pura sensibilidade.”
Quando o menino tinha 14 anos, uma nuvem de gafanhotos que se estendia por quilômetros devorou o capim, o milho e o trigo da localidade. Os insetos arrancaram até a lã dos carneiros. Encarados como a maior ameaça dos últimos tempos, os colonos iniciaram uma guerra contra os gafanhotos, e assim cada cidadão foi obrigado a entregar quinze quilos de gafanhotos mortos por semana. Quem não fizesse isso, seria multado.
Enquanto Edvard cumpria o seu papel, Ollie recusou-se a matar qualquer inseto. O menino via valor na vida de todas as criaturas, inclusive dos gafanhotos, e saía de casa arrastando os pés para não matar nenhum deles. Irritado com o comportamento do filho que custou-lhe uma multa, Edvard virou as costas para ele.
Ninguém na cidade conversava mais com o menino, e sentindo-se muito solitário, Ollie fez amizade com um gafanhoto, tornado seu confidente. O inseto, alimentado às escondidas, era mantido embaixo da cama para que Edvard não o visse. “Não é sua culpa que todos o odeiem. Você só está fazendo o que foi criado para fazer”, disse ao gafanhoto que recebeu o nome de Thor. Em resposta, ouviu somente um “Crii-criiic”.
Quando Edvard descobriu que havia um gafanhoto morando sob o seu teto, ele o arremessou na lareira e Ollie chorou depois de ouvir o lamento agudo do seu grande amigo não humano. Expulso de casa, o menino passou a noite no campo até ser encontrado pelo pai. O homem ficou chocado ao reconhecer que o filho virou um gafanhoto gigante. Sem saber o que fazer, buscou a ajuda de um velho sábio que possuía um livro justificando a metamorfose:
“Aqui diz que, quando uma pessoa com certo temperamento peculiar e um coração grande e generoso não se sente mais amada pelos de sua própria espécie, ela assume a forma de qualquer criatura com a qual sinta uma conexão maior.”
Edvard então foi informado que o filho só voltaria a forma normal se fosse realmente amado por alguém. Incapaz de demonstrar o seu amor, e sentindo repulsa por Ollie ter se tornado um dos seres que ele mais desprezava, o homem alardeou por toda a cidade que ele daria a sua fazenda a quem amasse seu filho e o fizesse retornar à forma humana.
O menino em forma de gafanhoto acabou capturado por filhos de colonos. Eles o aprisionaram, mas não conseguiram alcançar o objetivo, pois nenhum deles o amava, nem mesmo o respeitava. Vendido para um velho caçador, o gafanhoto começou a conviver com cães de caça, até que assumiu a forma de um cão. Durante uma caçada, ele soube que sua função era recolher os gansos abatidos pelo caçador.
No dia seguinte, reprovando a atitude do homem, ele fugiu pelo campo com os gansos. Sem saber do paradeiro do filho, Edvard sentiu-se muito mal pela perda de Ollie. Mais tarde, o fazendeiro casou-se novamente e teve uma filha a quem deu o nome de Asgard. A menina, que de tão bondosa era muito semelhante a Ollie, não enfrentou a mesma intransigência por parte do pai, provavelmente porque o homem temia cometer os mesmos erros.
Um dia, tendo somente nabos para comer, o fazendeiro comemorou quando encontrou um ganso no campo, disperso de seu bando. Edvard capturou o animal e o levou para casa, feliz com a possibilidade de um jantar à base de carne de ganso. “Mas nós não precisamos matá-lo. Podemos tomar sopa de nabo outra vez esta noite, eu não me importo!”, insistiu a menina que desabou diante da gaiola do ganso e começou a chorar.
Lembrando-se do filho, Edvard concordou em poupá-lo. Em pouco tempo, o animal tornou-se o melhor amigo de Asgard. E todos respeitavam o seu desejo de não querer vê-lo morto nem ferido. A convivência dos dois e o amor que ela dedicava ao ganso fez com que ele, numa manhã, retornasse à sua forma humana.
Acompanhado de Asgard, o pai ficou extremamente emocionado e perguntou a Ollie se ele poderia perdoá-lo. “Eu o perdoei há anos. Só demorei um pouco para encontrar o caminho de volta para casa”, declarou o rapaz de bom coração.
Ransom Riggs
De acordo com a Editora Intrínseca, Ransom Riggs cresceu na Flórida, mas reside na terra das crianças peculiares, Los Angeles. Formou-se no Kenyon College e na Escola de Cinema e TV da Universidade do Sul da Califórnia, além de fazer alguns curtas-metragens premiados. Nas horas vagas é blogueiro e repórter especializado em viagens.
Saiba Mais
“Contos Peculiares”, de Ransom Riggs, foi lançado no Brasil em 2016 pela Editora Intrínseca.
“O Gafanhoto” é o oitavo conto da obra.
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Amei cada detalhe dá história 😍😍😍😍
Que bom, Emilly!