Quatro romances com críticas à exploração animal

Frankenstein, de Mary Shelley, publicado em 1818

A escritora britânica Mary Wollstonecraft Shelley, famosa pela criação do monstro de Frankenstein, um dos mais emblemáticos da literatura mundial, teve uma vida pautada pelo vegetarianismo. Quando decidiu escrever aquela que se tornaria sua grande obra-prima, a maior inspiração da autora não foi basicamente o mito grego do titã Prometeu, um defensor da humanidade que roubou o fogo de Héstia e presenteou os mortais, mas também o seu posicionamento contrário à exploração animal. Nenhuma obra desse período superou a popularidade de Frankenstein. Em uma das passagens do livro, a criatura se emociona ao dizer que sua comida não é a mesma dos humanos:

“Não tenho que matar o cordeiro e a cabra para saciar o meu apetite. Bolotas e bagas são o suficiente para a minha alimentação. Minha companheira vai ser da mesma natureza que a minha, e vai se contentar com o mesmo que eu. Faremos a nossa cama de folhas secas; o sol vai brilhar sobre nós da mesma forma que brilha sobre os homens, e ele vai amadurecer a nossa comida. A imagem que apresento a vocês é humana e pacífica.” Ou seja, na essência, o monstro de Mary Shelley carregava em si a perfeição moral que faltava ao homem mediano, rendido aos excessos da glutonaria, da ganância e da megalomania.

“Por que há de o homem vangloriar-se de sensibilidades mais amplas do que as que revelam o instinto dos animais? Se nossos impulsos se restringissem à fome, à sede e ao desejo, poderíamos ser quase livres. Somos, porém, impelidos por todos os ventos que sopram, e basta uma palavra ao acaso, um perfume, uma cena, para provocar-nos as mais diversas e inesperadas evocações”, escreveu Mary Shelley em Frankenstein, externando sua antipatia pela jactância e pelos caprichos do ser humano.

Os Irmãos Karamázov, de Fiódor Dostoiévski, publicado em 1879

No romance que se tornou uma das mais sólidas e importantes obras da literatura russa, Doistoévski condena a comparação entre a crueldade dos seres humanos com a dos animais selvagens, justificando que é uma injustiça para com estes, já que as feras não atingem jamais os refinamentos dos humanos.

Segundo o narrador, o tigre dilacera sua presa e a devora; não conhece outra coisa: “Por isso, ame todas as criaturas de Deus, do todo ao grão de areia. Ame cada folha, cada raio de luz. Ame os animais, ame as plantas, ame cada coisa, e assim você conhecerá os mistérios de Deus.”

Ele defende que esse é o único meio de ter uma compreensão mais completa de que o mundo precisa ser amado, de forma abrangente e universal: “Ame os animais. Deus deu aos animais uma consciência rudimentar e uma imperturbável alegria. Não se deve chateá-los ou privá-los de sua felicidade. Não trabalhe contra os intentos de Deus. Homem, não se orgulhe de sua superioridade em relação aos animais. Eles não possuem pecados, enquanto você mancha a terra com tua grandeza, com tua aparição, deixando após ti um rasto de podridão — Ai! Quase todos nós!”, cita nas páginas 260, 352 e 353 de Os Irmãos Karamázov.

The Jungle (A Selva), de Upton Sinclair, publicado em 1906

A obra que denuncia as mazelas da indústria frigorífica tem como protagonista o lituano Jurgis Rudkus, um imigrante que mal sabe falar inglês e vive com a família em um distrito de Chicago dominado por currais e fábricas de carne processada. Desempregado, Rudkus aceita um emprego em um matadouro. Mas a desilusão cresce quando ele se vê endividado.

Às raias da miséria, é obrigado a se sujeitar aos trabalhos mais sórdidos, além de amargar experiências traumatizantes como a morte do pai, vítima da falta de segurança nas linhas de produção da indústria frigorífica. Em uma das passagens da página 38 de The Jungle, uma imigrante lituana se mostra chocada ao saber do destino de milhares de bois e vacas. “E o que será de todas essas criaturas?”, chorou Teta Elzbieta.

“Esta noite, todos serão mortos e fatiados. E logo ali, do outro lado dos depósitos de acondicionamento, há mais ferrovias, e de lá vêm os vagões que vão levá-los embora”, respondeu Jokubas Szedvilas. No total, dez milhões de criaturas vivas eram transformadas em alimento a cada ano.

Assim como os animais, os trabalhadores também eram tratados como seres inferiores, já que suas vidas se resumiam às longas jornadas de trabalho. Exemplo disso é um adolescente que vencido pela exaustão e pela embriaguez dorme no trabalho, onde se torna comida para ratos na madrugada. Nesse trecho, Upton Sinclair denuncia ainda a falta de higiene nas linhas de produção. Também revela no livro que muitas vezes a carne bovina se misturava à carne dos ratos que morriam nas linhas de produção.

À frente, havia uma grande roda de ferro, de 20 pés de circunferência e com anéis por toda a sua borda. (…) Quando a roda virou, o porco teve seu pé arrancado e arremessado para o alto. Ao mesmo tempo, ouviu-se um grito aterrorizante; os visitantes ficaram alarmados; as mulheres empalideceram e recuaram, escreveu Sinclair na página 40 de The Jungle.

No livro-denúncia, o sofrimento dos animais e dos homens estão interligados; um não existe sem o outro num contexto em que na prática o sonho americano não passa de uma distopia velada pela inocente fantasia. Nesse cenário, o maior financiador é o consumidor que alheio à excruciante realidade aceita tudo na sua passividade.

A riqueza de detalhes com que Sinclair descreve as más condições enfrentadas pelos trabalhadores e pelos animais explorados pela indústria fez com que milhares de pessoas se tornassem vegetarianas e protoveganas nas primeiras décadas do século 20. E com o tempo, e a popularidade mundial do livro traduzido em mais de 50 idiomas, o número de adeptos da alimentação livre de ingredientes de origem animal cresceu exponencialmente.

A omissão do Estado também endossa e justifica a existência dessas práticas. Publicado há mais de cem anos, The Jungle é uma obra que, em síntese, não apenas flerta com a atualidade, mas diz muito sobre ela. “Queria tocar o coração do público, mas acabei tocando o estômago”, declarou Sinclair ao avaliar a recepção do livro.

Jean-Christophe, de Romain Rolland, publicado entre os anos de 1904 e 1912

Na obra com viés autobiográfico, o autor francês narra a história de um gênio musical alemão que adotou a França como lar. A partir daí, ele sincretiza suas visões musicais, questões sociais, internacionalismo humanista e o direito dos animais à vida.

“Ele não podia mais suportar ver uma das cenas mais ordinárias que testemunhara centenas de vezes – um bezerro chorando em uma cesta de vime, com seus grandes olhos salientes, seus tufos brancos encaracolados sobre a testa, seu focinho roxo e suas pernas dobradas. Havia um cordeiro com as quatro pernas amarradas sendo transportado por um camponês.

Pendurado de cabeça para baixo, ele tentava elevar a própria fronte, gemendo como uma criança, balindo e pendendo a língua cinza. Havia aves amontoadas em uma cesta e podia-se ouvir ao longe os guinchos de um porco sangrando até a morte, além de um peixe a ser limpo em uma cozinha”, registrou Rolland em Jean-Christophe.

De acordo com o narrador, as torturas inomináveis que os seres humanos infligem a essas criaturas inocentes fez seu coração doer. “Concedendo aos animais um raio de razão, imagine o quanto o mundo pode ser um pesadelo terrível para eles: um sonho com homens de sangue frio, cegos e surdos cortando suas gargantas, abrindo-as, eviscerando-os, fatiando-os, cozinhando-os vivos e às vezes rindo da forma como eles se contorcem de agonia. Existe algo mais atroz entre os canibais da África?”, questionou.

Jornalista e especialista em jornalismo cultural, histórico e literário (MTB: 10612/PR)

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