Um ano depois, morte de cavalo em BH vira símbolo de impunidade

Animal foi encontrado morto sobre uma calçada entre do bairro Alípio de Melo, na região noroeste da capital mineira (Acervo: BH Sem Tração Animal)

Era sexta-feira, 29 de agosto de 2020, final de tarde, quando a equipe do grupo BH Sem Tração Animal recebeu mais um pedido de ajuda relacionado a equídeos em Belo Horizonte (MG). Desta vez, tratava-se de um cavalo tordilho, deitado em uma área do bairro Alípio de Melo, com sinais de exaustão, magreza e maus-tratos.

Imediatamente, os voluntários do grupo acionaram os agentes policiais, responsáveis por averiguar a denúncia. A resposta veio apenas da Guarda Municipal que dirigiu uma viatura até o local, onde os moradores da região que haviam pedido socorro estavam aguardando. Neste intervalo de tempo, entretanto, o carroceiro e tutor do animal de nome Daniel, vendo a movimentação, chegou ao local e, segundo relatos dos moradores, após ameaçar as pessoas que tentaram argumentar sobre o estado do cavalo, teria forçado o animal a se levantar evadindo-se do local.

Quando a viatura chegou, infelizmente, o animal não estava mais no endereço e os moradores e voluntários precisaram adiar o resgate para o dia seguinte. No sábado, 30 de agosto, novamente e, por duas vezes, a Guarda Municipal se dirigiu ao local após denúncia, não conseguindo localizar o cavalo, que sempre era retirado do endereço de localização pelo seu tutor, conforme relatos recebidos pelo grupo BH Sem Tração Animal.

Os moradores, então, prontificaram-se a monitorar o animal, tendo umas das protetoras feito uma nova tentativa de resgate no domingo (31), quando avistou o cavalo vagando pela rua em busca de alimento, também não obtendo sucesso porque a Polícia Militar não atendeu ao seu chamado, e o animal mais uma vez foi levado pelo tutor.

Na segunda, 1º de setembro, ao sair para caminhar e buscar informações sobre o cavalo Cintia Mayris Rocha o encontrou morto, na porta de uma casa, restando apenas lamentar o azar do animal que, de acordo com relatos, além de muito magro apresentava secreção purulenta pelo nariz, sangramento e vários machucados.

Um ano depois

O caso teve repercussão entre a comunidade protetora e ativista de Belo Horizonte (MG). Um ano depois do ocorrido, a Vegazeta resolveu procurar saber o desfecho deste caso nos termos da lei. Se as denúncias de maus-tratos confirmadas teriam gerado punições ao tutor e quais teriam sido estas penalizações. O resultado, no entanto, não foi muito animador.

Crimes cometidos contra espécies, como os equídeos, ainda são considerados como crimes de menor potencial ofensivo, ou seja, crimes de menor gravidade e, por esta razão as penalizações aplicadas ao infrator são menores, com pena de três meses a um ano de reclusão e multa. Por isso, procuramos traçar um panorama geral e atual no Brasil, quanto à realidade destes crimes na esfera penal.

Para o juiz federal, professor e coordenador do programa de direito animal da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Dr. Vicente Ataíde Junior, é preciso entender, inicialmente, que a Lei 9.605/1998 (Lei de Crimes Ambientais) foi aprovada logo após a Lei 9.099/1995, que instituiu os Juizados Especiais Criminais. Isso significa, de acordo com Ataíde Junior, que as penas atribuídas aos crimes ambientais (e aos crimes contra a fauna) foram fixadas em patamares baixos exatamente para que se enquadrassem nos Juizados Especiais e recebessem algum tipo de resposta penal, o que raramente acontecia à época, em função, quase sempre, da prescrição. Então era melhor ter alguma resposta penal (cestas básicas, por exemplo) do que não ter nada.

“Acontece que, de lá para cá, muita coisa mudou em termos de consciência ambiental e de preocupação com a crueldade contra os animais. Praticamente não tínhamos nada sobre direito animal na época [anos 1990]. Hoje temos leis e jurisprudência sobre direito animal, com a percepção clara de que animais são seres dotados de consciência e dignidade próprias, o que nos permite considerá-los como sujeitos de direitos (e não mais como coisas)”, explica o juiz.

“Recebemos em torno de três denúncias por dia, a maioria de equídeos soltos em via pública, o que se intensifica aos finais de semana, quando muitos são soltos propositalmente para se alimentar de lixo, ou em situação de maus-tratos” conta Caio Barros, ativista integrante do movimento BH Sem Tração Animal.

Para a advogada animalista Gabriela Maia, fundadora do Direito Animal Brasil (Dabra), em geral, quando há casos de maus-tratos a animais, principalmente os que não são cães ou gatos, a forma de se buscar maior reparação pela prática do crime é ir atrás da aplicação da multa administrativa e de ações cíveis para pagamento de indenização pelo dano causado, e porque apenas a sanção criminal não parece ser suficientemente severa para coibir a reincidência na prática delitiva. Muitas vezes, o fato de o animal não ter um tutor identificado dificulta a conclusão da investigação criminal porque o principal responsável pela segurança e integridade física do animal é o seu tutor.

“Também falta estrutura dos órgãos de investigação”

“Também falta estrutura dos órgãos de investigação, que contam com pouco pessoal para tantos casos diários. Outro fator pode ser a falta de interesse dos órgãos de investigação, principalmente quando não há uma delegacia especializada em crimes contra a fauna na localidade do fato – percebemos que os crimes contra animais costumam ser negligenciados se comparados aos crimes contra seres humanos ou patrimônio. É uma cultura que precisa urgentemente de mudança” reitera a advogada.

Caio Barros já registrou outras ocorrências de maus-tratos a equídeos, junto à Delegacia da Polícia Civil Especializada em Crimes Ambientais (Dema), enviadas ao BH Sem Tração Animal por meio de denúncias e, conta que recentemente foi acionado pelo órgão para informar mais detalhes de alguns destes casos, porém, até o momento, não crê ter havido resolução.

A Polícia Civil de Minas Gerais (PCMG), por meio de sua assessoria, ressalta que além da efetiva comprovação do crime de maus-tratos ser passível apenas na modalidade dolosa, ou seja, de comprovação da forma intencional, as maiores dificuldades na investigação desta modalidade de crime são a identificação de autoria, porque na maioria das vezes o animal é encontrado em via pública sem a presença de seu responsável. E, dessa forma, ao realizar diligências na busca pelo suspeito, que geralmente mora em áreas periféricas e de vulnerabilidade social não há contribuição de informações relevantes pelos moradores para sua localização e intimação.

A devida microchipagem dos equídeos e o cadastro dos animais e carroceiros nos setores da Prefeitura (BH) poderiam ajudar na apuração da autoria, já que com a leitura do microchip e consulta no sistema o responsável do animal seria identificado e, consequentemente, responsabilizado criminalmente. Outro problema surge no momento em que o animal é apreendido formalmente pela PCMG porque há grande dificuldade na sua destinação imediata. Por serem animais de grande porte requerem transporte adequado, bem como instalações físicas e manejo específico, o que não contribui para o encontro de um fiel depositário com disponibilidade e recurso financeiro imediato. Outra situação que merece destaque, por fim, é o fato da imposição da perda da guarda definitiva do animal somente ser proferida pelo Poder Judiciário.

“Ora, todo esse novo panorama (essa “virada pós-humanista”) acaba por exigir uma outra valoração das condutas humanas que provocam danos em animais. Não é mais possível considerar essas condutas como de ‘menor potencial ofensivo’. Evidentemente, como se trata de direito penal, as alterações demandam mudanças na lei. O primeiro passo foi dado com a aprovação da Lei “Sansão”, que tornou crime sério os maus-tratos a cães e gatos. Mas é preciso avançar para ampliar as punições para os animais de outras espécies, como os equídeos. Nada justifica esse tratamento diferenciado. Nesse sentido, existem bons projetos de lei – como o PL 4400/2020, na Câmara de Deputados – que precisam ser apoiados, com pressão legítima por parte da sociedade. Eventualmente, até um projeto de iniciativa popular poderia ser interessante para demonstrar a reivindicação popular para o aumento da resposta penal contra os maus-tratos em relação a todos os animais”, explica Vicente Ataíde Junior.

“Nada aconteceu”

Segundo fontes, no dia da morte do animal, ao ser questionado por um dos guardas municipais que atendeu a ocorrência, o tutor e carroceiro Daniel, após ser questionado sobre a magreza e o estado do seu animal teria confirmado ter ciência de que seu cavalo estava com alguma doença, sem saber exatamente qual seria e, que apenas o estava alimentando, sem tê-lo levado ao veterinário ou medicado, o que acaba dizendo muito sobre as práticas cometidas, diariamente, contra esses animais.

“Já dei meu depoimento na Dema e, até hoje, um ano depois, nada aconteceu e, eu não tenho notícias sobre o caso. O que sei é que dois dias depois da morte do cavalo branco, Daniel já estava com outro cavalo e com as mesmas atitudes. Chicote em punho açoitando o animal pelas ruas do bairro” – desabafa Cintia Mayris Rocha, acrescentando que o carroceiro já teve outros cavalos. “Todos em situação de maus tratos, inclusive uma mula que era furada com prego. Todos são chicoteados e a fama dessa pessoa é de alguém que não cuida bem e maltrata muito” lamenta a protetora.

“Minha sensação é de completa impunidade e descumprimento da lei que regulamentou as carroças. Eu, como cidadã, tenho o sentimento de revolta por ver circulando pelas ruas da minha cidade animais sendo explorados, vítimas de maus-tratos e, nada acontece. Como se essa situação fosse normal! Uma Belo Horizonte onde cavalos não cavalgam, mas morrem todos os dias, vítimas da crueldade e pela falta de política pública que garanta o seu direito a uma vida digna.”

A Prefeitura de Belo Horizonte, por meio de assessoria, informou que os animais vítimas de maus-tratos ou abandono são recolhidos pela PBH, encaminhados a hospitais veterinários parceiros e, caso necessário, é realizado o exame de corpo delito e o animal é tratado adequadamente. Após a hospitalização, é encaminhado para adoção responsável e aposentadoria. O contrato de adoção temporária é assinado após entrevista, sendo que o animal não pode ser submetido a nenhum tipo de trabalho ou montaria.

Toda a documentação referente ao caso é encaminhada para a Polícia Civil e Ministério Público para decisão final e responsabilização pelos maus-tratos, se for o caso. Para dar suporte às ações, a PBH criou o primeiro abrigo de animais da história do município, com capacidade para receber 25 animais simultaneamente. Quanto aos apreendidos em vias públicas, e que não apresentam sinais visíveis de maus-tratos, ainda de acordo com a PBH, estes são devolvidos aos seus tutores mediante cadastramento e pagamento de multa, conforme a legislação vigente ordena.

Observação

Segundo fontes, o abrigo mencionado pela PBH em sua declaração ainda não está em funcionamento.

Daniela Sousa é responsável pela assessoria de comunicação do movimento Brasil Sem Tração Animal e Direito Animal Brasil (Dabra).

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