Por que achar aceitável separar filhotes de suas mães?

Uma reflexão sobre a banalização da relação familiar não humana a partir da série “Monk”

No episódio 11 da oitava temporada da série “Monk” há uma cena que serve para refletirmos sobre a banalização da relação familiar não humana.

O protagonista, Monk, evita que a cadela Shelby, encontrada na cena de um crime, seja levada para um canil onde ela logo poderá ser morta.

Preocupado, ele a leva para casa. Monk não sabia que Shelby estava perto de dar à luz. Após o nascimento dos filhotes, uma menina e sua mãe decidem levar um deles para casa.

Monk discorda. “Não posso separá-los. Eles têm que ficar juntos”, defende. Natalie, sua assistente, argumenta: “Sr. Monk, sei que é triste, e que pensa na sua família, mas cães são diferentes.” Monk insiste em sua posição: “Não, eles são uma família. Têm que ficar com a mãe.”

Monk representa uma consciência atípica em um cenário de normalização da separação de outros animais – como se a maternidade e as relações parentais não humanas devessem ser tratadas como de pouca importância para os próprios animais que as vivem e que são privados delas.

Essa percepção revela como capacidades e sentimentos de outros animais são percebidos como menores para se adequarem ao interesse humano, e isso ocorre mesmo que de forma irrefletida.

Isso também foi fortalecido pela cultura de compra e venda de animais, que levou à intensificação da banalização do impacto da experiência dos animais em relação ao sentimento de perda gerado pela separação arbitrária, forçada.

Quando Natalie diz que “os cães são diferentes” é como se ela dissesse que para os cães a família não é tão importante, e que não há nada de errado em separá-los.

Ela não vê gravidade nessa fala porque o especismo levou à normalização da ideia de que família só pode ter um alto grau de importância no contexto das relações humanas – como se fosse exclusivamente humana, um tipo de excepcionalismo.

“Tem cinco cachorros aqui. Você não pode ficar com todos”, insiste Natalie, para demover Monk da ideia de mantê-los juntos. Natalie não é má intencionada, mas sua visão pragmática está viciada pela crença de que os outros animais não sentem como nós, não sofrem como nós e portanto a consideração sobre suas experiências pode ser relativizada à medida do interesse humano.

Mas mesmo que haja animais que lidem melhor do que os humanos com a perda, nós deixamos de saber o que fazemos com eles e isso deixa de parecer arbitrário? Tudo isso ocorre com Shelby, a mãe dos filhotes, próxima deles.

Se essa história fosse relatada, sem dizer que se trata de uma cadela, de um animal não humano, o que seria dito e concluído? Mesmo que se diga que os “animais são diferentes”, como se isso pudesse justificar o que é imposto a eles, sem considerar seus interesses, nós sabemos quando separamos famílias de outros animais e como nos sentiríamos se alguém afetasse nossos próprios interesses básicos de cultivar laços familiares – algo que tantos pensadores já reconheceram como inerente à animalidade que compartilhamos com muitos outros animais.

Ademais, dizer que são diferentes, com a intenção de minimizar uma preocupação sobre animais de outra espécie, é cair numa abstração e comumente generalizante. Apesar disso, em “Monk”, o final é favorável a Monk e a Shelby, já que a mãe da menina decide ficar com todos, incluindo Shelby.

Enfim, em um mundo onde tantos acreditam que não há nada de errado em destruir relações familiares não humanas, e podemos estender a consideração às nossas relações de consumo, já que a maioria dos animais não pode desenvolver nem preservar laços familiares porque são criados como um fim no consumo, esse é um ponto de grande importância para refletirmos sobre como vemos e como aceitamos o que é feito com outros animais.

Podemos pensar neste momento em tantos bezerros separados de vacas, leitões separados de porcas e por conseguinte.

Observação

O especismo é um preconceito baseado na crença de que por nos considerarmos superiores aos outros animais podemos submetê-los aos nossos interesses.

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Jornalista (MTB: 10612/PR), mestre em Estudos Culturais (UFMS) com pesquisa com foco em veganismo e fundador da Vegazeta.

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