Causar mal a um animal não é causar mal a alguém?

Uma reflexão a partir do filme “Os mortos não morrem”, de Jim Jarmusch

No filme “Os mortos não morrem”, de Jim Jarmusch, há uma cena em que dois policiais conversam e um deles diz para o outro que Bob, que vive na floresta, onde caça esquilos e mata também outros animais para comer, nunca prejudicou alguém.

Para o policial, prejudicar esses animais não é prejudicar alguém. Ele reproduz a ausência do sentido de indivíduo desses animais, de indivíduos em consideração. Para ele, o sentido de alguém depende de quem se fala.

Isso quer dizer que só faria sentido o “alguém” se fosse humano, se caçar animais e matá-los para comer não é “prejudicar alguém”, mesmo que seja um prejuízo irreversível para o animal.

O policial não é culpado de sua própria percepção. Ele reproduz o que é comum sobre a realidade ordinária de tantos animais, já que normalmente quando as pessoas falam em prejudicar alguém é comum a exclusão de muitos animais, e principalmente daqueles que são prejudicados e sequer são pensados como prejudicados – como ocorre com os animais submetidos aos interesses humanos de exploração e consumo.

Com essa ideia de “alguém” em que se exclui animais é evidente a invisibilização desses animais. A afirmação do policial é um exemplo da normalização da inconsideração em relação a outros animais. Isso requer nossa atenção porque é algo que costuma passar despercebido e sequer é questionado quando dito também fora da ficção.

Mesmo que humanos também passem por situações que possam ser observadas como de ausência do seu reconhecimento como alguém, isso jamais seria reproduzido de forma tão normalizada a ser compartilhada como se reproduzisse a percepção da maioria.

Por outro lado, não é difícil perceber como em relação a tantos animais isso ocorre ainda hoje como se fosse algo banal – e porque ainda é comum o animal não ser visto como alguém. Isso ocorre também porque prejudicá-lo é a norma, para a qual ele deve nascer e morrer, se pensamos, por exemplo, na realidade de consumo, que, para os animais como vítimas, é arbitrária.

Enfim, quando se fala em prejudicar alguém é comum pensar que se fala sobre prejudicar um humano. Mas e todos os animais que são prejudicados por interesses humanos de uso, exploração e consumo? Negar a eles o reconhecimento como alguém é parte de uma conveniente tradição que visa a continuidade do uso feito deles – porque é negá-los como alguém que favorece tal uso e inconsideração. Afinal, se normalmente fossem vistos como alguém, seriam reduzidos ao que são?

O filme “Os mortos não morrem” está disponível na Netflix.

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Jornalista (MTB: 10612/PR) e mestre em Estudos Culturais (UFMS).

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