“Princesa Mononoke” é um filme de animação japonês lançado pelo Studio Ghibli em 1997 e que, décadas depois, continua bem atual, na sua premissa de propor uma reflexão sobre a importância do respeito pelos animais e pela natureza.
Com pouco mais de duas horas de duração, o filme de Hayao Miyazaki traz questionamentos contundentes em crítica à percepção antropocêntrica em relação à natureza. No filme, somos apresentados a humanos que veem a floresta como algo que existe somente para exploração, para fins econômicos.
O filme traz uma mensagem de que os humanos devem encontrar um meio de viver em harmonia com outros animais e com a natureza, sem vê-los como fins no interesse humano ou como obstáculos à realização humana.
Há uma cena em que o protagonista Ashitaka diz: “Primeiro roubam a floresta do javali, depois o transformam num demônio, e agora vocês fabricam armas ainda mais mortais.” Além de explorar um território que já era habitado por outras espécies, os humanos usam esse próprio território para espoliar riquezas que serão transformadas em algo destrutivo a ser usado contra os seus habitantes não humanos.
Em “Princesa Mononoke” há uma guerra iniciada pelos humanos contra outros animais ao tentarem se apropriar da floresta e expulsá-los de lá, visando minar qualquer resistência e estabelecer um pleno domínio.
Embora isso seja apresentado explorando o gênero fantasia, o que é central nesses conflitos reflete a própria realidade – que é a indiferença aos interesses não humanos e como esse mal causado aos outros também volta-se contra o próprio ser humano quando a ambição vira ganância e anula o bom senso.
Enquanto outros animais querem apenas preservar a floresta, no filme há humanos também manipulam e enganam outros humanos para alcançar seus objetivos nocivos aos animais e à natureza. O ponto visceral dessa ganância está no próprio desígnio humano de querer aniquilar o Shishigami, que é o espírito da floresta, assim como seu protetor.
A diferença entre o objetivo humano e o não humano na história é exposta nas palavras de Lady Eboshi, que é uma das responsáveis por liderar a guerra contra outros animais: “Eles vêm à noite para plantar árvores e reconquistar a montanha. Fique aqui, ajude-me a matar o espírito da floresta, Ashitaka.” “A senhora mataria mesmo o próprio coração da floresta?” “[…] Com o fim da floresta e dos lobos, esta será uma terra de riquezas.”
Nesse discurso está exposta a contraditória normalização de que o certo deve ser visto como errado e o errado como certo. Ademais, Eboshi personifica uma falta de percepção muito comum ainda hoje, de ignorar que a floresta só existe e é o que é na sua relação ecossistêmica com outras espécies, incluindo os animais que Eboshi quer destruir, e com quem estabelece conflito porque eles são contra essa espoliação prejudicial à floresta.
Para Lady Eboshi, tudo deve ser instrumentalizado, espoliado ou obliterado. Nada pode ser pensado como desconectado de um fim no ser humano. Ao ignorar a observação de Ashitaka sobre o “coração da floresta”, ela também revela outra cegueira comum hoje, de que a natureza, para muita gente, ainda é percebida como uma fonte inesgotável de recursos.
Nesse contexto, a Princesa Mononoke, também chamada de San ou menina-loba, por passar a viver com os lobos da floresta, é uma humana que atua como uma guerreira do lado não humano.
De um lado, Eboshi quer destruir os outros animais e San quer se livrar dos humanos. A diferença está no fato de que a primeira é parte dos que provocaram essa guerra e a segunda dos que reagem ao mal como consequência que surge dela.
Nesse meio, Ashitaka tenta recuperar uma relação harmoniosa entre elas. Primeiro, ele é acolhido por Eboshi, quando tenta se livrar de uma maldição que se espalha por seu corpo e que o matará. A maldição surge como consequência da exploração da floresta por outros humanos.
Mas, ao desenvolver uma melhor compreensão dessa realidade ao conhecer San, ele percebe a legitimidade nas ações não humanas, em que o ataque é uma forma evidente de defesa. Ainda assim, não consegue escolher um lado ao ponto de crer que um deles deve ser destruído. Mais tarde, ele questiona a loba a quem San chama de mãe: “Moro, por que os humanos e a floresta não vivem em paz?”
Embora Ashitaka se coloque mais como um mediador na história, evitando que um lado seja destruído pelo outro, por crer que isso não resultará em uma relação harmoniosa, o filme externa o óbvio – outros animais não têm os interesses não humanos que resultam em grandes males. Logo a mudança de atitude depende de uma consciência humana como resultado de uma nova percepção sobre o valor da vida, não somente humana, e dos espaços naturais.
Se San tem grande rejeição aos humanos, afirmando odiá-los, isso não surge gratuitamente, se está vinculado ao desmatamento, à exploração das riquezas naturais, extração de minério, etc. Há um momento em que um dos macacos diz: “Plantamos árvores, os humanos as derrubam.” E essa derrubada, claro, não surge como necessidade, mas como escolha e como ato arbitrário, ao desconsiderar o que para tantos outros é um malefício.
Ao desejar o fim do Shishigami, que representaria o estabelecimento de um controle humano da floresta, Lady Eboshi e seus comparsas ignoram que isso também representaria o fim da floresta – e por uma falta também de percepção holística da natureza impossibilitada por um olhar que nada vê que não seja um fim exploratório.
Mas as consequências na história ajudam a transformar os olhares e os interesses, porque aproximam a conclusão de que é preciso harmonizar interesses, e sem que os interesses humanos se sobreponham aos outros; como se devessem receber um lugar especial de consideração que os coloque em vantagem mesmo quando isso significa prejudicar os outros.
Enfim, “Princesa Mononoke” é um filme que confronta a crença de que os humanos têm o direito de domínio sobre tudo, que tudo que existe é somente para seu benefício. Afinal, essa unilateralidade é o que nos trouxe à realidade de um grande aumento de problemas ambientais, algo que, sem dúvida, já havia sido percebido por Hayao Miyazaki nos anos 1990.
Uma palavra crítica
Claro que também podemos problematizar algumas coisas no filme se considerarmos que não deixa de haver um protagonismo humano mesmo na luta dos não humanos contra os humanos. Ademais, o próprio ato de humanos montarem animais silvestres em “Princesa Mononoke” evoca ainda a questão controversa do domínio.
O filme está disponível na Netflix.
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