Experiência de sofrimento faz homem se recusar a matar animais

No filme “Tudo por justiça”, protagonista interpretado por Christian Bale desenvolve uma nova percepção

No filme “Out of the furnace”, lançado no Brasil como “Tudo por justiça”, de Scott Cooper, há uma cena em que Russell (Christian Bale) sai para caçar com o tio Red (Sam Shepard). Ao encontrar um cervo, Russell observa o animal que também o observa. A experiência o impede de vê-lo somente como “caça”. Ele hesita, sente-se interpelado pelo olhar do animal. O olho no olho o leva a considerar os interesses do cervo. Ele sabe que ele não quer morrer.

Russell desiste de matá-lo e depois, enquanto ajuda Red a arrastar um cervo morto, ele diz que não encontrou “nada”. É a experiência de perdas de Russell que o faz refletir sobre a perda irreversível e fatal que ele está prestes a concretizar contra o animal. Russell estava preso por se envolver em um acidente que resultou na morte de uma família. Enquanto isso, ele foi deixado pela companheira e seu pai morreu.

As perdas tornam Russell mais sensível também a outras realidades. Além disso, no filme, o que houve com os cervos – o que não foi morto por Russell e o que foi morto pelo tio dele – ganha um paralelo com a realidade de seu irmão Rodney (Casey Affleck), que, assim como Petty (Willem Dafoe), é morto após uma luta organizada por DeGroat (Woody Harrelson) – que, no fim, os trata como presas. A luta, seu cenário e as mortes pós-luta também permitem uma relação com as rinhas, onde animais que já não são considerados úteis vivos, e que passam a ser vistos como um incômodo, são mortos.

No filme, a empatia que Russell tem pelo cervo que ele não matou, DeGroat (Woody Harrelson) não tem por seu irmão Rodney nem por Petty. E a maneira como eles morrem é brutal, assim como é brutal a morte normalizada contra tantos animais – são executados como se não houvesse nenhum interesse da vítima a se considerar.

Com a morte brutal do irmão, Russell decide caçar DeGroat. Ele prepara uma armadilha, o alveja, a princípio, para não matar. Depois o persegue durante a fuga a pé. Após ouvi-lo, permite que ele percorra alguns metros, e atira nele. A consideração que Russell desenvolveu pelos animais não humanos antes inconsiderados por ele, ele não tem por DeGroat,  e como resultado de um acúmulo de perdas e experiências que se transformam em algo ainda maior com a crueldade de DeGroat contra seu irmão.

Para Russell, DeGroat é, por escolha, um assassino. Portanto, deve pagar por isso. Mas a morte de DeGroat não traz alívio, quando vemos Russell sozinho, desaparecendo na escuridão, como se estivesse sumindo no seu próprio senso de justiça, que surge do seu esvaziamento forçado. Ele já havia perdido tudo, até o emprego, já que a fábrica onde ele trabalhava faliu – algo que também expõe uma das facetas do capitalismo.

A partir do filme, podemos refletir sobre como o próprio sofrimento pode motivar um ser humano a refletir sobre sofrimentos antes inconsiderados – como dos animais não humanos. Também podemos considerar que a maneira como Scott Cooper traz isso no filme permite pensar em como a condição animal é percebida comumente como se existisse para ser uma desconexão entre humano e não humano, como no exemplo da caça, ainda que isso seja somente uma arbitrariedade normalizada, e não uma “ordem natural das coisas”. Afinal, a mudança em Russell que o motivou a não matar o cervo veio com um olhar em que se reconhece o animal a partir do próprio interesse do animal.

No ensaio “Animais, meus irmãos”, que integra seus diários preservados pela Universidade de Chicago, o pacifista alemão Edgar Kupfer-Koberwitz, que sobreviveu ao campo de concentração de Dachau, registrou que “sofreu tão dolorosamente que poderia sentir as dores dos outros lembrando seus próprios sofrimentos”. Ou seja, a experiência de dor humana também pode ser transformadora em relação a como pensar e se relacionar com outras formas de vida.

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Jornalista (MTB: 10612/PR), mestre em Estudos Culturais (UFMS) com pesquisa com foco em veganismo e fundador da Vegazeta.

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