“Pepe”, de Nelson Carlo de Los Santos Arias, é um filme sobre os hipopótamos que Pablo Escobar levou para a Colômbia, para viver em sua fazenda, a Hacienda Nápoles. O título faz referência a um dos animais escolhidos para ganhar uma voz humana que atua como uma representação dos interesses do animal, que é definitivamente silenciado pela violência humana, assim como outros hipopótamos.
No filme, que tem início na África Subsaariana, Arias apresenta a relação dos hipopótamos com os nativos a partir de observações e relatos baseados em uma sabedoria ancestral e compartilhados por um motorista. Tudo que ele fala não visa colocar os humanos como superiores, muito pelo contrário, já que o viver dos hipopótamos é definido por ele como uma fonte de sabedoria e de aprendizado para os humanos.
Podemos concluir, a partir da fala do motorista, que os hipopótamos devem ser deixados imperturbados, porque não podem viver à medida do interesse humano. Há observações que valem também para pensarmos em outros animais prejudicados pela ação humana. As observações dele também fazem lembrar do personagem Brás Cubas, de Machado de Assis, que no pós-morte divaga e tem como guia espiritual um hipopótamo que o leva ao encontro da natureza.
Mas em “Pepe”, que conta uma história real, há humanos que os tratam como criaturas a serem privadas de seu habitat. Há uma cena em que Pepe diz que sua história só está sendo contada porque ela é secundarizada pela história humana. Ou seja, de outra forma, não haveria um grande interesse em sua história. Assim, sua importância só existe porque está condicionada a uma história de protagonismo humano, que nesse caso envolve Pablo Escobar.
Ele também questiona a ideia do “nós” e “eles”, em relação a humanos e não humanos, que estabelece uma separação que faz parecer que a animalidade só existe no não humano e porque a animalidade deve ser pensada somente como referente a esse outro que nós humanos não somos, que estranhamos, mas sobre quem se busca exercer um tipo de domínio.
A referência à inteligência do hipopótamo em “Pepe”, e que também surge logo no início, não é para atribuir uma consideração por ele estritamente com base nisso, mas para evocar a complexidade que constitui o seu ser. A voz que ele ganha, por meio do antropomorfismo, a questão memorial de sua jornada e de seus familiares, tudo isso visa motivar uma superação da ideia de inferiorização animal, quando referente aos não humanos.
É um exemplo em que o antropomorfismo não surge como nas parábolas antropocêntricas, e sim busca construir uma defesa do animal em relação ao seu próprio ser, sua vida e as imposições que a transformarão. A voz de Pepe é a voz para o reconhecimento de uma outra perspectiva que entra em conflito com o que é humanamente arbitrário.
Porém há partes do filme em que Pepe deixa de aparecer e de ter voz. Isso reflete também a marginalização do animal e que culminará em sua morte, assim como de outros hipopótamos abandonados na Hacienda Nápoles e que passaram a ir além da fazenda para garantir a sobrevivência.
Mesmo que os primeiros hipopótamos tenham sido levados para lá após serem capturados na natureza e transportados como se não fossem os animais que são, a justificativa para matá-los ampara-se na contradição de percebê-los como invasores, ainda que sejam animais nativos da África Subsaariana e que nunca chegariam até lá pelos próprios meios, e sequer o desejariam, considerando a dimensão espacial e os próprios interesses desses animais.
Há uma cena em que se ouve: “Esses animais estão aqui há 25 anos e só agora eles são considerados perigosos. E os agentes ambientais, que deveriam defendê-los, são os primeiros a darem a ordem para matá-los.” Ou seja, o que ocorre com Pepe, que é morto a tiros, e com outros hipopótamos vistos como um problema, é uma ação de conveniência e que antagoniza tudo que é colocado no filme a partir da voz que se articula como de Pepe.
A voz de Pepe, que tanto expressa no filme, é ignorada e vilmente silenciada. Perto do fim, também ouvimos alguém, que não é identificado, dizer: “Pepe foi baleado, porque supostamente ele não era daqui. Era um infiltrado, que não merecia ser nacionalizado, porque não era daqui. Afirmavam que ele carregava doenças desconhecidas e engolia os outros. Todas desculpas caluniosas, e se ele tivesse parentes, poderiam processar por difamação os gênios das nossas entidades de proteção ambiental, mas que são, essencialmente, seus destruidores.”
Matá-lo é uma solução mais fácil e barata, por isso não se busca alternativas, e que surge amparada na crença de que o hipopótamo, um não humano, pode sim ser morto. Pepe é fuzilado por decisão do governo por estar em um lugar que não escolheu estar – morre de uma forma comumente considerada inaceitável até mesmo contra criminosos.
Arias, principalmente do meio para o fim, também traz outros personagens e mostra como a vida transcorre em um lugar onde Pepe é reduzido a puro estranhamento, um estranhamento que não surge com ele, mas a partir do que é imposto a ele. Ele morre pelas escolhas que não pode fazer, mas que fizeram por ele, assim como fizeram com outros.
“Pepe”, de 2024, está disponível no Mubi.
Observação
Com a morte de Pablo Escobar, os animais passam a buscar a sobrevivência da forma como podem, sendo negligenciados pelo governo e pelo poder público em geral.
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