O episódio “Brinquedo”, o quarto da sétima temporada da série “Black Mirror”, da Netflix, traz uma mensagem poderosa contra o domínio sobre os animais. Na história, o desenvolvedor de jogos eletrônicos Colin Ritman (Will Poulter) cria algo que não é um jogo, mas que é desenvolvido como se fosse porque é a única forma de ser financiado e de atrair grande interesse humano. Ou seja, ele usa a lógica capitalista contra a lógica capitalista (ainda que não chegue a ser vendido) e contra o especismo na tentativa de mudar a forma como nos relacionamos com outras formas de vida.
Ao conhecer “Thronglets”, a criação de Ritman, Cameron Walker (Lewis Gribben), acredita se tratar de um jogo e pergunta, ao ver pequenas criaturas em um cenário que ocupa a tela do computador: “Como eu os controlo?” Ritman redargui: “Por que você precisa controlá-los?”
Nesse momento, o desenvolvedor propõe uma ruptura com a lógica de que devemos “controlar outras criaturas”, o que para ele é uma reprodução da lógica da instrumentalização sobre outras formas de vida. Ou seja, como se outras existências só fizessem sentido à medida em que podem estar sob controle humano e para fim no interesse humano – algo normalizado pela cultura especista.
Ritman continua: “Você não pode controlá-los. Eles são indivíduos vivos…” A mesma lógica que ele estabelece em relação às criaturas em “Thronglets”, é negada em relação aos animais submetidos à exploração humana – que, embora indivíduos, não são realmente tratados como se fossem.
Walker também questiona qual é o objetivo em “Thronglets” e recebe outra pergunta como resposta. “Por que você precisa de um objetivo?” Ritman então questiona a concepção ocidental da vida que, também levada aos jogos eletrônicos, não se desvencilha de uma visão do tempo e da própria vida baseada no sentido reducionista de “utilidade”.
“Com o tempo, você apreciará a companhia do Throng”, diz Ritman, que vê em “Thronglets” um chamamento para uma coexistência entre humanos e outras formas de vida, e livre do estabelecimento do domínio, da subjugação e da destruição.
Não por acaso, há um momento em que ele diz que é sobre “criaturas, animais, formas de vida. Vida senciente – é disso que se trata.” A forma do “jogo” é então uma camuflagem para algo maior que visa transformar a relação dos seres humanos com outros seres. “Claro que tive que fazer parecer um jogo, ou não iriam financiar – ninguém iria comprar”, frisa. Outra crítica à lógica capitalista surge quando ele diz que ninguém mais percebeu que não era um jogo porque “eles só conseguem pensar em termos do que é vendável”.
Ritman classifica os jogos convencionais como sobre a perpetuação do domínio humano. São sobre conflitos, mas conflitos que envolvem matar, conquistar – o que para ele não são mais do que “coisas primitivas”. “Acho que precisamos fazer melhor. Temos que fazer um software que nos aperfeiçoe, que nos melhore como seres humanos”, observa ao justificar a necessidade dos throngs.
As criaturas em “Thronglets” são unidas por uma mente coletiva e em expansão, algo que é colocado no episódio como deficiente nas relações humanas. Essa ideia de coletividade antagoniza a banalização do coletivo na esfera humana. Ritman também explora o sentido holístico da vida – de que há uma conexão entre humanos e outras formas de vida, e que não temos o direito de nos colocar sobre todas as outras e porque não estamos acima delas nem devemos nos ver como superiores a elas – como fazemos quando colocamos nossa animalidade, não reconhecida como animalidade, como mais relevante do que todas as outras e em um nível que nos damos o direito de privá-las de seus interesses.
Logo, o episódio “Brinquedo”, de “Black Mirror”, é sobre a importância da coexistência em vez da exploração e destruição de outras formas de vida – é algo que dialoga com antigos e ancestrais saberes de povos não ocidentais. Cameron Walker (Peter Capaldi) décadas depois ainda dá continuidade ao interesse dos throngs de uma coexistência com os humanos. Essa coexistência vem com um sentido de mudança, de libertar os humanos desse anseio pelo domínio, que é também percebido pelos throngs como uma irrefletida prisão não somente não humana, mas também humana, que leva a ciclos ininterruptos de destruição.
Quando Walker é interrogado por um policial e uma psicóloga, após acharem um corpo humano em seu apartamento, ele diz que humanos consideram outras formas de vida menos importantes que eles. Enquanto Walker reflete e questiona a violência estrutural nas relações humanas-humanas e humanas-não humanas, o policial só consegue enxergar a violência pontual e objetiva baseada no cadáver encontrado. Enquanto Walker fala em “nossa predisposição à violência”, em relação ao que fazemos com tantos seres vivos, o policial rejeita sua conclusão e rebate: “Sua predisposição à violência”.
Isso expõe também a visão comumente limitada em que não se reflete sobre como a violência pontual é consequência da violência estrutural – mas o policial se nega a vê-la por fatores culturais de base antropocêntrica e especista.
Walker, para defender os throngs, mata acidentalmente, durante uma briga, o colega que invadiu seu quarto e matou muitos throngs. Sobre isso, ele faz uma observação de como seu colega foi motivado, em sua ação violenta, por uma cultura especista: “Humanos consideram outras formas de vida menos importantes que eles. Inerentemente dispensável. Pergunte ao Dodo [ave extinta], se você não acredita em mim.”
Os throngs surgem exatamente para reverter essa cultura de naturalização da violência contra formas de vida não humanas, e que, impercebidas, estão em conexão também com a violência de humanos contra outros humanos. Há uma cena em que o Walker mais velho diz: “O sistema operacional humano sempre foi nossa ruína. Criamos todas essas incríveis ferramentas, mas somos selvagens aqui – na mente. Cabeças cheias do mesmo software bugado de um milhão de anos atrás. Nos tempos das cavernas, você tinha que ser violento para sobreviver. Isso ficou na cabeça e agora o único jeito de sobrevivermos como espécie é se cooperarmos. Mas ainda não fazemos isso.”
Ainda que Walker fale sobre a sobrevivência humana, o que os throngs visam mudar não é somente o ser humano em relação ao seu próprio destino. Claro, esse apontamento surge para apontar a gravidade da realidade – mas é sobre muito mais do que isso. É sobre como naturalizamos a violência contra outras formas de vida e sem que sequer haja um reconhecimento disso como violência ou mesmo um exercício cruel de domínio. Isso também é observado como parte de uma tradição de ser tão territorial quanto egoísta, segundo Walker.
O episódio também questiona a ideia da superioridade da linguagem humana quando o Walker mais velho diz que os throngs têm uma linguagem mais sofisticada e mais eficiente porque, diferentemente da nossa, não são “somente vogais e consoantes”. Esse é um exemplo interessante porque a linguagem verbalizada tem sido usada há séculos para inferiorizar animais não humanos e, na emergência de uma espécie com uma outra linguagem, e considerada melhor, isso surge como crítica à crença no excepcionalismo humano baseado na linguagem. Ademais, ele avalia que temos uma limitada coerência determinada pela língua que criamos e usamos.
Conforme Walker, “eles cantam uma sequência de dados em meros segundos que equivalem a uma semana de pensamentos”. E reforça: “Conceitos lindos”. Essa observação sobre a beleza está relacionada às questões de coexistência e cooperação defendidas pelos throngs entre humanos e outras espécies – superando todas as cadeias de legitimação de violências.
Mesmo que nos coloquemos como superiores, podemos dizer que os throngs estão acima de nós, porque ao final do episódio, mesmo que questões fiquem em aberto, o que é proposital, há um reconhecimento de que o interesse dos throngs prevalece – e, porque, independentemente da vontade humana, esse domínio que leva à violência contra outras espécies será findado. Para garantir isso, os throngs usam uma combinação de consciência e tecnologia não humana.
Como lembra-nos Cameron Walker, o defeito humano está em não ter evoluído no que mais importava – uma vida de cooperação com outras espécies. Portanto, há uma crítica a conceitos de civilização e progresso. Em “Thronglets”, a novidade para o jovem Walker era se abrir para a diferença, reconhecendo a alteridade e sua importância – o que quer dizer respeitar o outro em suas diferenças e também reconhecer o valor inerente de outras vidas, tentar entender seus interesses, algo que a maioria dos humanos não faz em relação a tantas formas de vida quando as prejudicam sem sequer reconhecer isso como um mal. Para os throngs, os humanos precisam mudar para que a coexistência e a rejeição à normalização da violência seja uma realidade.
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