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E se humanos fossem dominados como dominam outras espécies?

Uma reflexão sobre especismo a partir da preocupação humana com uma invasão alienígena na série “O Problema dos 3 Corpos”

Na série “O Problema dos 3 Corpos”, da Netflix, baseada no livro homônimo de Cixin Liu, o que chama atenção em um determinado momento é o medo de Thomas Wade (Liam Cunningham), líder de uma agência de inteligência, de que a humanidade seja subjugada por uma espécie mais evoluída.

O sentido de evolução que gera preocupação é o de ter os meios necessários para que uma espécie prevaleça sobre as demais. O temor de Wade é de que uma outra espécie, não terrestre, esteja em posição de fazer o que quiser com os humanos.

Isso permite pensar na semelhança com o mal baseado no especismo que atinge tantos animais; que ampara-se na crença de que os animais que são prejudicados por interesses humanos, como exploração e consumo, só são prejudicados porque não podem por conta própria impedir que seus interesses básicos não sejam violados.

Logo é o domínio humano sobre outras espécies um constante exercício de supremacismo, que trata a diferença como inferioridade; e a trata dessa forma como meio de sustentar que “se os outros animais não são como nós, menos ou até mesmo nenhuma consideração devemos ter em relação aos seus interesses (vitais) que entram em conflito com os nossos (não vitais)”.

Wade não pode ter certeza do que esperar da espécie San-Ti, considerada mais preparada tecnologicamente e que se já estivesse chegando à Terra teria facilidade em exercer domínio sobre a humanidade, o que inclui redefinir o papel dos humanos no planeta.

É na incerteza do que pode ocorrer e no temor de ver-se no momento como inferior à outra espécie que mimetiza um terror que não leva em conta as semelhanças com o que ignoramos na nossa relação com outras espécies, com muitos outros animais – uma relação de dominadores e dominados.

Esse sentimento que evoca uma evidente vulnerabilidade é experimentado diariamente por muitos animais que não conseguem evitar o que contra eles é o mal comum da ação humana sequer vista como mal (por sua normalização e institucionalização).

Mas a diferença também é que há uma afirmação de legitimidade na invasão extraterrestre que, conforme a série, deve afetar gerações vindouras, porque os San-Ti acusam a humanidade de não ter feito um bom ou adequado uso do planeta Terra.

Nisso, diferentemente do mal do supremacismo humano que legitima o que é arbitrário em relação aos outros animais ao mesmo tempo em que afeta ambientalmente a vida de tantos (humanos e não humanos), há uma controversa afirmação de interrompimento do ciclo de destruição humana.

Isso também permite uma relação com as discussões atuais em torno do impacto ambiental resultante da ação humana e leva-nos a pensar também em questões como as mudanças climáticas (ainda que não possa ser dito que todos os humanos causem o mesmo impacto). Portanto o domínio extraterrestre seria justificável, segundo os invasores, sob uma controversa perspectiva também de preservação terrestre.

Há uma crença de que para os San-Ti a humanidade (principalmente na forma de seus líderes ou daqueles que estão em posição privilegiada na escala de influência e impacto humano) habita um planeta da qual não tem se mostrado digna, embora seria equivocado atribuir tal culpa a todos os humanos. Ademais, aqueles humanos que os apoiam e permitem-se um lugar de instrumentalização também o fazem por uma descrença na capacidade humana de tornar a Terra um lugar melhor para todos.

Logo os San-Ti também amparam-se, mesmo que lancem mão de meios arbitrários, na crença de um mal por um bem. A espécie então passa a ser uma expressão de apontamento do que é reprovável sobre o ser humano. É o que ela aprende sobre o ardil humano que a motiva a usar também o que é humano contra o ser humano.

Não por acaso, humanos também já usaram o que é não humano contra não humanos. Basta considerarmos a história de domesticação de animais e de como os animais domésticos submetidos à exploração e consumo hoje são vítimas de interesses extremamente arbitrários.

O que também torna a situação mais grave para os habitantes da Terra e especialmente para aqueles que planejam uma batalha contra os San-Ti é que eles estão enfrentando uma espécie com capacidade de onisciência.

Enfim, a série “O Problema dos 3 Corpos” pode ser explorada para discutir especismo a partir do momento em que se uma espécie desconhecida é vista como ameaça, e também por contar com habilidades e recursos que a colocam em vantagem em relação ao ser humano, assim ameaçando seu privilégio especista, porque não consideramos também que somos uma ameaça para tantos animais e por um exercício de domínio tão comum que sequer é pensado como reprovável?

Logo o medo humano de ser dominado surge também pela jactante crença antropocêntrica e humanista (se consideramos a observação do filósofo John N. Gray de que o humanismo é também um antropocentrismo, conforme o seu livro “O Silêncio dos Animais – Sobre o Progresso e Outros Mitos Modernos) de que ninguém pode dominar o ser humano, sendo a dominação-mor somente inerente a ele em relação a outras espécies.

Observação

Na série um macaco é utilizado em uma inédita viagem espacial, o que também evidencia o especismo humano, considerando que tal viagem não é do interesse desse animal e sim de quem determinou que ele fosse submetido a essa experiência.

Leia também “E se alienígenas invadissem a Terra e comessem humanos?” e “E se humanos fossem transformados em outros animais?

Jornalista (MTB: 10612/PR) e mestre em Estudos Culturais (UFMS).

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