E se alienígenas invadissem a Terra e comessem humanos?

Ponto crucial da reflexão não é discutir se isso é possível, mas refletir sobre o sentido desse consumo. Não é isso que fazemos com animais de outras espécies? Pensei nisso ao assistir ao filme “Nope”, de Jordan Peele

 

E se um dia alienígenas invadissem a Terra e comessem humanos? O ponto crucial da reflexão não é discutir se isso é possível, mas refletir sobre o sentido desse consumo. Não é isso que fazemos com animais de outras espécies? Pensei nisso ao assistir ao filme “Nope”, de Jordan Peele, que no Brasil recebeu o título “Não! Não Olhe!” e apresenta uma criatura que alimenta-se de humanos, mas que utiliza também essa construção para explorar metáforas e o que é visível ou não em relação a quem e para quem.

Mas se normalmente nos alimentamos de quem não conhecemos e para quem não olhamos, já que a comida não é viva e o comum da maioria é não estabelecer com o animal nenhum tipo de interação que não seja com suas partes mortas, o alienígena do filme, que não deixa de ser uma criatura abstrata, não alimenta-se do que é abstrato – o que ele come é exatamente com quem ele estabelece um olhar que é assimilado também como confronto. Ele vê e é visto por quem será comido.

Nisso, o alienígena não compartilha a dissimulação que é inerente a esse consumo como hábito humano. Ademais, o ato de comer humanos pode ser percebido como retaliação pela tentativa de condicioná-lo e domesticá-lo. Essa mesma domesticação é apresentada em “Nope” como um fracasso na figura de Gordy, um chimpanzé usado em uma sitcom e que um dia mata quase todo o elenco e equipe do programa, sendo em seguida executado a tiros.

Ou seja, o problema é percebido não como a domesticação para um fim no ser humano, mas como o próprio animal ao ter uma atitude que é resultado de uma violência silenciosa que visa subtrair o animal de sua própria animalidade para impor-lhe outra, mais aceitável ao interesse humano.

O único sobrevivente do programa, em vez de reconhecer um mal inaceitável, os extremos que levam a outros extremos, vê na domesticação uma possibilidade de ilimitada exploração, e é isso que culmina num outro extremo – de tentativa de “domesticação alienígena”. O lugar de Gordy no filme e de todos aqueles que são submetidos à exploração pode ser exemplificado pelo momento em que alguém diz: “Não, “Gordy! Não! Abaixa! Senta! Parado!” Enfim, o lugar de quem existe ou deve existir para ser dominado.

A tentativa de “negociação” com o animal é um vazio, uma unilateralidade, e que culmina na violência última do não humano. É intrigante quando dizem que o alienígena é um animal territorial, que acha que aqui é a casa dele.” O mesmo não pode ser observado sobre o ser humano? Quando é dito para “não olhar nos olhos dele”, talvez devêssemos pensar que porque o que será visto nesse animal, na sua abstração, sem forma bem definida, é também o ser humano no seu estado imperativo de arbitrariedade.

Há uma cena em que o diretor que será chamado para filmar o alienígena assiste vídeos da natureza silvestre, da cadeia alimentar, o que evoca força e astúcia em um exercício de domínio. Mas se na natureza isso se dá menos por escolha do que por sobrevivência, fora desse contexto, se usamos o que é o comportamento na natureza para justificar nossas atitudes, fazemos isso pelo que é reducionismo pelo pior, e somente por conveniência, já que um contexto é injustificável a outro, e também pelas disparidades do que é possível pelo que é articulação como motivação social, política e econômica. No entanto, sendo o alienígena uma entidade de força preponderante, subjugar humanos é possível pelo que é nossa vulnerabilidade, assim como é a vulnerabilidade de outros animais em relação a nós.

Em outro momento, ouve-se uma voz em um jogo: “Há uma fera terrível à solta. Está atacando os habitantes, destruindo plantações e comendo o gado.” Difícil dizer se é sobre um personagem fictício e específico ou sobre o que é humano. Ao querer discutir sobre o alienígena comer humanos, o personagem de Daniel Kaluuya é advertido: “Ninguém quer falar sobre isso.” Também não queremos falar sobre os animais que comemos, porque o que comemos não chamamos de animais.

“Todo animal tem suas regras”, diz o protagonista, que reconhece nos animais o que é complexidade e o que não pode ser definido como irracionalidade. Mas o fim no ser humano não deixa de ser imperativo. “Além do dinheiro e fama, podemos salvar vidas, podemos salvar a Terra, certo?” O questionamento que motiva o interesse em filmar o alienígena revela o interesse de justificar moralmente esse fim.

Jornalista e especialista em jornalismo cultural, histórico e literário (MTB: 10612/PR)

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