EUA, o pior país do mundo para os animais

Como o imperialismo cultural dos EUA ampliou a crueldade animal no mundo

Foto: CIWF

Pode parecer exagero afirmar que os EUA são o pior país do mundo para os animais, mas não é. Podemos começar considerando que os EUA têm o maior consumo médio de carne do mundo – 124 quilos per capita/ano, segundo dados da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO).

Ninguém come tanta carne quanto o estadunidense médio. Imagine como o mundo seria ainda mais violento para os animais se todos os países do mundo tivessem esse mesmo consumo. Até mesmo o colapso climático chegaria mais rápido.

Nem mesmo Canadá, Austrália ou os países de mais alta renda da Europa, que também despontam entre os maiores consumidores de carne per capita do mundo, assim como o Brasil, superam os EUA em consumo médio de carne.

Além disso, se hoje 85% dos mais de 80 bilhões de animais criados para consumo por ano no mundo a partir da pecuária estão submetidos a cruéis sistemas industriais, segundo levantamento do World Resources Institute (WRI), não podemos ignorar que isso teve início nos EUA, que se destacou por esse “pioneirismo”. Afinal, o país criou e globalizou o modelo de pecuária industrial.

Uma boa obra para compreender a dimensão desse cruel pioneirismo é “The Jungle”, de Upton Sinclair, livro sobre o qual já foi publicado na Vegazeta. Também é o mesmo sistema que teria influenciado os campos de concentração nazistas, conforme o livro “Eternal Treblinka”, de Charles Patterson, sobre o qual também já publicamos.

A industrialização da criação e morte de animais em Chicago no início do século 20 foi o ponto de partida para a popularização internacional do consumo de bacon, que hoje também é muito popular no Brasil. O bacon não teria o mesmo impacto em outros países sem a influência dos EUA e sua cultura de fast food a partir da “Campanha do Bacon” iniciada em 1920, criando demandas artificiais para beneficiar criadores de porcos e a indústria.

Mais tarde, o país exportou seu sistema de pecuária industrial, que chegou não apenas ao Canadá, Austrália e Europa, assim como aos países de mais alta renda da Ásia (Japão e Coreia do Sul, impactados pela ocidentalização promovida pelos EUA com a ocupação após a Segunda Guerra Mundial), mas também aos países do Sul Global como China, Brasil, Argentina, Índia e México, entre outros.

Ou seja, os EUA criaram o padrão global de exploração em massa de animais para consumo. Também ajudaram a reforçar a crença de que ter um aumento de renda deve levar a um consumo mais elevado de carne, o que favorece o próprio sistema criado por eles e que hoje é considerado a norma de “eficiência na agropecuária”, ignorando o que isso significa para os animais e para o meio ambiente.

Essa propaganda funcionou para popularizar o sistema de criação de animais para consumo dos EUA e sua aceitação em outros países – tornando até mesmo países que passaram a adotá-lo como dependentes desse sistema, já que com uma demanda mais alta, passa a ser visto como “menos eficiente” criar animais de outra forma, ou seja, no modelo antigo.

Mas isso não quer dizer que devemos ignorar a realidade da exploração animal fora dos EUA ou usar esse exemplo para eximir outros países de responsabilidade em relação à criação de animais para consumo, ainda que muitos países possam ter um consumo médio de carne até cinco vezes menor que os EUA e também várias vezes menor que Canadá, Austrália, etc.

Infelizmente, hoje o Brasil está seguindo os passos dos EUA no aumento do consumo de carne, além de aumentar sua exportação agropecuária para outros países. Sendo isso tão prejudicial aos animais quanto ao planeta, o que podemos esperar?

O Brasil não deveria repetir os erros dos EUA, mas se voltar para proteínas sustentáveis – vegetais, fermentadas, se não queremos nem o aumento da crueldade animal nem nossos biomas sendo reduzidos a “celeiros de ração” para suprir não apenas a demanda local como global para alimentar animais criados para exploração e abate.

O aumento do consumo de animais leva à intensificação do tratamento de animais como commodities. Enfim, precisamos ir na contramão da influência dos EUA em maior consumo per capita de carne, pioneirismo na crueldade industrializada e influência desproporcional na cultura global – que estimula outros países a copiarem também seus piores hábitos e práticas.

O país mais influente em experimentação animal 

Os EUA também são o país que lidera testes e experimentos com animais e que teve influência sobre a popularização global desses testes, embora a experimentação animal moderna tenha surgido e se desenvolvido na Europa entre os séculos 17 e 19.

Ainda hoje, cerca de 20 a 25 milhões de animais são usados por ano nos EUA para essa finalidade, conforme dados da People for the Ethical Treatment of Animals (PETA), Humane World for Animals e Nature. Esse número ainda mantém os EUA à frente de todos os outros países que realizam experimentos e testes com animais – até mesmo da China que já foi tão demonizada até por veganos brasileiros que nunca tiveram o mesmo olhar crítico em relação aos EUA.

O país tem uma conduta de falta de transparência sobre uso de animais em laboratórios, já que a maioria dos animais não entra no relatório oficial do Departamento de Agricultura dos Estados UNidos (USDA), que exclui da contabilização a maioria dos animais mais explorados para essa finalidade – em vez de milhões (20-25 milhões) falam em milhares (780 mil) –, como ratos, camundongos, aves, peixes, répteis, anfíbios e invertebrados.

Mesmo a inspeção que envolve animais contabilizados cobre menos de 10% de todos os laboratórios dos EUA, segundo levantamento da HWFA. Coelhos, por exemplo, ainda que sejam contabilizados, a denúncia da mesma organização é de que os números reais são cinco vezes maiores.

Ademais, os EUA ainda não têm uma lei federal que sequer proíbe o uso de animais na indústria cosmética. Então é contraditório quando seus políticos e cidadãos tentam apontar para problemas de “crueldade animal” em outros países, e normalmente escolhem os países do Sul Global como alvos de críticas. Hoje, dos 50 estados dos EUA, somente 11 proíbem testes em animais para cosméticos.

A não contabilização de tantos animais nos EUA, e que é uma realidade mais crítica do que em outros países mais comumente criticados por crueldade animal, revela um viés extremo do especismo, já que isso mostra que muitos animais são tratados com tanta inconsideração que sequer são reduzidos a números. Segundo a PETA, Os EUA também são o principal destino de primatas para laboratórios – mais de 107 mil aprisionados anualmente.

Devemos lembrar também que países como Brasil, Japão e Coreia do Sul, por exemplo, decidiram adotar experimentos e teste com animais com base na influência dos EUA – assim adotando até modelos importados de regulamentação a partir dos anos 1960-1980.

Isso revela também uma hegemonia científica em que a “crueldade animal” praticada nos EUA passa a ser a norma científica de se praticar “crueldade animal” em outros países de forma regulamentada. Se pensarmos bem, o formato de especismo mais dominante hoje é aquele exportado pelos EUA e isso não se aplica somente aos experimentos e testes com animais.

Enfatizo, mais uma vez, que isso não é sobre eximir práticas de exploração animal, ou especistas em geral, que surgem ou são praticadas em outros lugares, mas compreender como essas práticas passam por metamorfoses e influências em suas constituições e usos.

Rodeio, outro “produto” dos EUA

Além de experimentos com animais e os modelos de pecuária industrial – como o uso globalizado das Concentrated Animal Feeding Operations (CAFOs), que foram implantadas nos EUA a partir da década de 1950 (mesmo período de expansão das redes de fast food no país), impondo mais privação e sofrimento aos animais, até o uso de animais como entretenimento foi exportado pelos Estados Unidos. O rodeio, contraditoriamente reconhecido por lei como “expressão da cultura popular brasileira”, é um exemplo.

A prática surgiu nos EUA pós-Guerra Civil, ou seja, no final do século 19, e foi sistematizada pela Associação Profissional de Cowboys de Rodeio (PRCA na sigla em inglês). A partir da influência dos ranchers dos EUA, o Brasil teve o seu primeiro rodeio realizado em Barretos (SP) em 1956. A importação do rodeio marca uma associação conveniente com o emergente agronegócio brasileiro, que decidiu explorar a prática em relação com a propaganda da pecuária nacional.

A própria invenção do “peão de rodeio” não tem relação com o Brasil colonial nem originalmente com elementos da cultura brasileira e sim com a criação de uma alternativa ao “cowboy” – portanto uma adaptação baseada em uma importação. Os rodeios brasileiros também adotaram técnicas copiadas de manuais da Associação Profissional de Cowboys de Rodeio dos EUA.

Outra prática cruel importada é a “pega do porco”, que surgiu nos EUA primeiro, sob o nome “pig wrestling”, no contexto dos rodeios, e só mais tarde chegaria ao Brasil. A prática consiste em perseguir um animal assustado e imobilizá-lo. Isso ocorre em um lamaçal do qual o leitão não pode escapar. A “pega do porco” também é uma extensão da popularização do rodeio estadunidense e sua influência no surgimento do rodeio brasileiro. Ainda que se diga que é uma tradição em cidades do interior do Brasil, a prática não tem raízes na cultura brasileira.

Já a palavra “rodeio”, que tem origem no espanhol “rodeo”, passou a ser usada no Brasil na década de 1950 e imitando o modelo dos EUA, que popularizou o termo “rodeo”, transformando-o a partir do século 19 em um espetáculo de massa exportado para outros países. Mesmo hoje, há termos usados no rodeio brasileiro, envolvendo jargões técnicos e modalidades, que não perderam sua relação com a língua inglesa, como é perceptível principalmente nos maiores eventos de rodeio realizados no país. Isso também expõe que a linguagem do rodeio brasileiro reflete a importação da prática.

Referência de crueldade em circos

Mesmo que o uso de animais em circos, assim como em zoológicos, tenha surgido com o colonialismo, como já observaram também escritores como John Berger e J.M. Coetzee, os EUA não só popularizaram o uso de animais em circos como transformaram essa exploração em um modelo industrial de entretenimento cruel, exportado para muitos países.

Nos EUA do século 19, circos como Ringling Bros. e Barnum & Bailey, fundado em 1871, criaram o padrão moderno de exibição de animais silvestres como “espetáculo”, explorando tanto táticas brutais quanto um “marketing da crueldade”, que ensinava como romantizar a violência contra os animais – modelo que seria exportado para a América Latina a partir do início do século 20.

Mesmo os circos estrangeiros que chegavam ao Brasil e que não vinham dos EUA, como os europeus, já haviam adotado os métodos de adestramento violento baseado na hegemonia circense estabelecida a partir dos Estados Unidos – que influenciava quais animais usar e como usar – porque o Ringling Bros. se tornou a referência global por ser considerado o exemplo mais bem-sucedido de exploração de animais na arena circense.

Técnicas como uso de ganchos, choques e privação de comida para adestramento, assim como espetáculos pirotécnicos com animais (para disfarçar estresse) foram adotadas em muitos países a partir dos manuais de treinamento do Ringling, que eram traduzidos e copiados por circos de diferentes origens.

A Feld Entertainment (dona do Ringling Bros.), que tinha o maior poder econômico e lobby do segmento, assim como influência para interferir até sobre empresas circenses estrangeiras, dominava o mercado global de uma forma que favorecia até a pressão sobre países que não tinham essa tradição para fazê-los aceitarem shows com animais – o que expõe outro imperialismo cultural da crueldade animal. Há importantes informações sobre o tema em livros como “The Circus Age: Culture & Society Under the American Big Top”, de Janet M. Davis.

No Brasil, circos que tinham foco em acrobacias, não em uso de animais, foram prejudicados. No país, nos anos 1980, houve uma consolidação da ideia de que as “atrações principais” deveriam ser elefantes e tigres, velando a crueldade por trás desse entretenimento.

Isso é atribuído também à chegada dos circos dos EUA ao Brasil. O Ringling Bros. excursionou pelo país à época, trazendo espetáculos com elefantes, tigres e ursos – algo que foi beneficiado pela glamourização desse uso em programas de TV do país. Preocupados em perder espaço, outros circos nacionais decidiram mudar, e os que não mudaram acabaram perdendo espaço ou falindo.

É impossível negar a influência do imperialismo cultural baseado na crueldade animal consolidado a partir da hegemonia circense estabelecida pelos EUA no século 20 – afetando tradições locais e transformando o sofrimento em commodity. Ou seja, um produto padronizado, lucrativo e dissociado de ética, apenas para entreter e gerar lucro.

Essa realidade impôs em muitos lugares a crença de que “circo de verdade é circo com animais”, o que acabou sendo naturalizado de modo a ignorar que o circo não surgiu com fim no uso não humano, mas a partir da admiração de qualidades e habilidades humanas que se tornaram dignas de exposição.

Líder em caça esportiva e comércio de animais exóticos

Intensificadas com o colonialismo, a caça esportiva e o comércio de animais exóticos também se expandiram com os EUA. Se no século 19, a caça como hobby era vinculada a um “privilégio aristocrático”, no século 20 se tornou um clubismo elitizado com comoditização da vida selvagem, já que animais se tornaram “troféus” com preços tabelados.

Segundo a Humane World for Animals, os EUA são o maior importador de troféus de caça do mundo, respondendo por 70% do mercado global. Só de 2005 a 2014, 1,26 milhão de animais selvagens foram importados como troféus por caçadores dos EUA. Isso quer dizer que esses animais foram mortos e que seus corpos foram levados para o país como uma lembrança material da experiência de matá-los.

Além disso, o país domina 40% do mercado global de animais exóticos, que tem um valor anual de 15 bilhões de dólares – uma consequência de fatores como a demanda artificial a partir da glamourização da posse de felinos e primatas, além da legislação permissiva de estados que permitem criação comercial de tigres, como Texas e Flórida.

Hoje, há mais tigres em cativeiro nos EUA (cerca de cinco mil) do que na natureza (cerca de 3,9 mil), segundo levantamento da organização World Wide Fund for Nature (WWF). Também estima-se que 80% dos répteis vendidos nos país vêm de contrabando – o que inclui jiboias da Amazônia. Podemos lembrar também que uma investigação do Ibama revelou que entre 2010 e 2020, 3,5 mil animais silvestres brasileiros foram apreendidos em malas de cidadãos dos EUA.

Um levantamento da Associação de Caçadores Profissionais da África do Sul também já revelou que os EUA são responsáveis por 60% do turismo de caça na África do Sul, (PHASA na sigla em inglês), além de despontar como o maior importador de animais silvestres para uso como “pets” e em laboratórios. Os EUA também permitem lojas e plataformas on-line de venda de animais exóticos e silvestres. E em um período de 22 anos, o país importou mais de 2,8 bilhões de animais silvestres de quase 30 mil espécies, segundo pesquisa publicada pela revista científica Pnas.

Exportadores da exploração animal em forma de parques aquáticos

Os EUA também são os maiores exportadores do modelo de parques aquáticos baseados em exploração animal. De documentários como “Blackfish” a relatórios da Whale and Dolphin Conservation (WDC), Humane World for Animals e Proteção Animal Mundial, ou artigos científicos publicados no periódico Journal of Marine Animals and Their Ecology, encontramos informações que confirmam a influência dos EUA em relação a esse tipo de crueldade animal.

A história dos EUA com o parque aquático SeaWorld, fundado em 1964, colocou o país em primeiro lugar como o que mantém mais orcas em cativeiro no mundo. Até 2016, a indústria criada pelo SeaWorld foi a número um em exportação de orcas para parques aquáticos de outros países.

Sua influência não se limita a isso, já que o próprio modelo de parque aquático, incluindo planejamento e operação, influenciou o surgimento de parques aquáticos em outras partes do mundo, principalmente para quem buscava lucrar com a exploração de animais aquáticos. Portanto a expansão dos parques aquáticos no mundo também se relaciona ao imperialismo cultural dos EUA ao mostrar como isso pode ser rentável, ignorando a crueldade animal.

Hoje, essa realidade está mudando, já que o SeaWorld não tem a mesma influência e os parques aquáticos já não recebem o mesmo olhar de anuência ou condescendência por parte do público. Porém nada disso apaga o protagonismo dos EUA em relação à popularização global dos parques aquáticos como uma forma contemporânea de romantizar essa crueldade animal vendida como entretenimento.

Influência global em zoológicos 

A influência dos EUA também pode ser percebida em seus zoológicos que criaram um padrão imitado por outros países e se tornaram a principal referência na romantização de zoológicos como espaços de conservação, mesmo quando denúncias ou mesmo visitas provam claramente o contrário.

Embora também seja uma herança do colonialismo, os EUA se tornaram a referência a partir do século 20 sobre o que fazer para monetizar de forma mais eficiente esse modelo, estabelecendo um novo padrão de exploração.

A experiência estadunidense estabeleceu modelos que contam com megaexposições espetaculares (arquitetura que prioriza o “show”), cativeiro vitalício em maior escala e comércio com base em troca entre zoológicos, como se animais fossem colecionáveis.

Segundo a organização Born Free Foundation, mais de 80% dos membros da Associação de Zoológicos e Aquários (AZA), sediada nos EUA e que certifica zoológicos em 13 países, não cumprem metas reais de reintrodução de animais na natureza – o que expõe a predominância do econômico sobre o discurso de conservação. A própria associação ser sediada nos EUA já surge do reconhecimento do país como definidor dos parâmetros de zoológicos em outros países.

Zoológicos no Brasil também se basearam em zoológicos nos EUA, que oferecem consultoria para abertura de zoológicos em outros países. Mesmo em sua forma mais contemporânea, há uma priorização sobre o que fazer para melhorar a experiência dos visitantes, ainda que ao custo do bem-estar de animais que nunca mais estarão em contato com a natureza ou jamais a conhecerão, no caso daqueles que já nascem em cativeiro – mesmo que santuários sejam uma alternativa ética.

Ademais, zoológicos dos EUA também são conhecidos por importar muitos animais do Sul Global, conforme a Born Free. Também influenciam zoológicos do mundo todo com seus softwares de gestão e padrões de exibição que ajudam no fortalecimento da percepção de zoológicos como um espaço que deve ser operacionalizado e percebido como um modelo de negócios.

Softwares como o Species360 (ZIMS) são usados para facilitar troca de animais e explorar a reprodução de animais em cativeiro. Sua influência, que parte dos EUA, chega a mais de 1,3 mil zoológicos de 102 países. Enfim, a tecnologia e os modelos de gestão dos EUA não apenas modernizam zoológicos, mas também reforçam sua lógica comercial, algo que não raramente entra em conflito com o bem-estar animal. Afinal, qual animal gostaria de viver em cativeiro e sendo exposto a uma plateia?

Aumento da “carnificação” da dieta em outros países

O fast food exportado pelos Estados Unidos para o mundo também elevou o consumo global de carne. Redes como McDonald’s, Burger King e KFC se tornaram “armas culturais” na associação entre carne, modernidade e conveniência.

No Japão, o consumo de carne quadruplicou após a chegada do McDonald’s, segundo o livro “Golden Arches East: McDonald’s in East Asia“, de James L. Watson. Até mesmo na Índia, cadeias como KFC e Burger King popularizaram o consumo de frango após adaptá-lo usando temperos locais.

No Brasil, o consumo de frango e carnes processadas teve um aumento de 300% entre 1990 e 2020, segundo dados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) em conjunto com a FAO. O crescimento coincide com a expansão acelerada do mercado de fast food no país, que passou de cerca de 100 estabelecimentos em 1980 para mais de cinco mil unidades em 2020, de acordo com a Associação Brasileira de Franchising (ABF).

Além disso, houve uma popularização de produtos prontos em supermercados, com os embutidos e pré-processados de frango dominando 25% do setor de congelados, conforme dados da NielsenIQ (2022). Já uma pesquisa do IBGE revelou que 68% das famílias brasileiras preparam fast food caseiro com esses produtos industrializados.

Hoje, o consumo de hambúrgueres, nuggets e bacon no Brasil é comum mesmo entre pessoas que nunca tiveram o hábito de frequentar o McDonald’s ou Burger King, mas ainda assim foram impactadas por essa cultura popularizada em tantos países pelo fast food dos EUA.

Isso ocorreu porque esse fast food criou padrões que influenciaram a indústria alimentícia e sua oferta de produtos em açougues e supermercados. Muitos países que tinham um baixo consumo de carne passaram por uma mudança em decorrência dessa transformação, e assim a carne, que não era consumida com frequência, passou a fazer parte do cotidiano.

Os problemas de saúde que se discute hoje em relação com o consumo de carne em muitos países decorrem também dessa relação de influência dos EUA. Ainda assim, claro, nenhum país chegou a superar os EUA em consumo de fast food, o que também revela que nenhuma cultura seria capaz de assimilar esse consumo mais do que quem o originou.

O motivo é que mesmo com a popularização do fast food, em muitas culturas, como a brasileira, o fast food não é dominantemente reconhecido como comida de verdade, mesmo que faça parte do cotidiano de tantas pessoas.

A alta demanda gerada pelas redes de fast food nos EUA e no mundo, a partir do seu modelo exportado, também favoreceu a popularização e intensificação da pecuária industrial e o surgimento dos megafrigoríficos. Isso pode ser compreendido pelo fato de que há países como os EUA em que uma grande parte da população consome carne proveniente das redes de fast food.

Segundo o Departamento de Agricultura dos EUA, 48% da carne bovina produzida nos EUA vai para cadeias de fast food e food service. E 60% do consumo de frango ocorre por meio de nuggets, sanduíches ou frango frito comercializados por redes de fast food. Além disso, 70% de todo o consumo de carne bovina nos EUA ocorre fora de casa – fast food e restaurantes.

Mesmo em países como o Brasil, essas redes também estimularam a ampliação da pecuária industrial para atender à demanda por carne, ainda que não seja a única causa, já que a pecuária industrial prospera onde o consumo de carne cresce, favorecendo também a intensificação da redução de animais a produtos.

Porém não podemos negar também que as cadeias de fast food deram origem a novos hábitos ao normalizarem esse consumo de uma forma que as novas gerações o reconheçam como “hábitos naturais”.

Criação de demandas artificiais

Hambúrgueres não existiam no Brasil antes das redes de fast food e hoje mesmo seu consumo fora desse contexto não pode ser pensado como se não tivesse sido estimulado por esse contexto. Assim, mesmo a cultura de consumo de “lanches de rua” no Brasil é influenciada por essa cultura exportada pelos EUA. O mesmo ocorreu em muitos outros países do Sul Global e do Norte Global.

Inegável também é a influência dos produtos do fast food na padronização de alguns tipos de carne e na forma de se criar animais com “mais eficiência” e com menor custo para atender à demanda, intensificando confinamento animal em larga escala e também estimulando o uso massivo de ração à base de soja (também ligada ao desmatamento). No Brasil, as redes de fast food também fizeram a indústria se adaptar para produzir carne moída e frango empanado em grande escala.

Logo, podemos concluir que o fast food dos EUA não exportou somente produtos, mas também recriou sistemas alimentares no Sul Global ao criar demandas artificiais (hambúrgueres, nuggets e bacon) e, em algumas regiões, chegando a enfraquecer ou até apagar hábitos culturais ao favorecer uma maior padronização do paladar.

Isso expõe que os EUA não só comem mais carne, que é indissociável da violência contra animais, mas influenciam o mundo a comer como eles. Isso resulta, claro, em mais sofrimento animal, aumento da adesão a um modelo de pecuária industrial criado nos EUA, em mais desmatamento, mais emissões de carbono e mais doenças crônicas.

Segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), se o mundo comer como os EUA, precisaremos de mais 175% mais terra até 2050. Difícil também ignorar que problemas de saúde envolvendo obesidade e diabetes, que atingem populações hoje do Brasil, China e México também estão relacionadas à influência dos EUA em dietas alimentares de outros países, já que acabam adotando hábitos não saudáveis que surgiram e se popularizaram a partir dos EUA.

Segundo levantamento do think tank Global Footprint Network, se toda a humanidade adotasse o estilo de vida médio dos EUA (incluindo dieta), seriam necessários cinco planetas Terra para suprir a demanda anual de recursos.

Capitalismo e especismo

O que também podemos concluir a partir de tudo que foi abordado é que a hegemonia estadunidense na industrialização da exploração animal revela uma relação estrutural entre capitalismo avançado e mercantilização da vida. Como epicentro global desse sistema, os EUA não apenas normalizaram a crueldade animal como modelo de negócios, mas exportaram-no como paradigma a ser replicado.

Seu sucesso em dissociar crueldade de lucro — por meio também de marketing e pressão econômica — criou um efeito cascata. Países que adotam esse modelo, como o Brasil, não apenas reproduzem a violência, mas a intensificam, buscando competir no mercado que os EUA definiram. Portanto, em seu pioneirismo, os EUA operaram como laboratório global da exploração animal industrializada, transformando seres sencientes em commodities de alta rotatividade. E sendo a nação mais influente do mundo, seu impacto foi imenso.

Mas esse modelo também só se tornou dominante, logo hegemônico, porque explorou e intensificou o especismo já normalizado por sociedades humanas (ainda que houvesse exceções, viveres que já preconizavam uma outra relação com outras formas de vida). Logo, a superação do especismo depende da desconstrução da hierarquização da vida, da crença de que humanos têm direito de dispor de outras espécies para qualquer finalidade.

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Jornalista (MTB: 10612/PR), mestre em Estudos Culturais (UFMS) com pesquisa com foco em veganismo e fundador da Vegazeta.

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