Há 1,4 mil anos, budistas chineses já desenvolviam carnes vegetais

Alternativas à carne foram criadas como parte dos preceitos de uma alimentação baseada na não violência

Su Shao’e – alternativa à carne à base de tofu ou yuba (película de leite de soja) com cogumelos (Foto: The Plant-Based Wok)

Embora carnes vegetais estejam se popularizando mais na atualidade, envolvendo preocupações éticas, ambientais e de saúde, não se trata de uma invenção contemporânea. Há 1,4 mil anos, budistas chineses da escola Mahayana, seguindo o preceito da não violência (ahimsa), já dominavam as técnicas-base das carnes vegetais.

Eles aperfeiçoaram técnicas de um antigo livro agrícola chinês, o “Qímín Yàoshù”, que pode ser traduzido como “Técnicas Essenciais para o Povo”, escrito em 544, por Jia Sixie, para desenvolver alternativas à carne à base de soja, trigo e cogumelos, valorizando também uma relação respeitosa com a terra. Era comum uma combinação de vegetais e fungos – e também porque eles já reconheciam nos cogumelos a base do sabor umami (o quinto gosto básico do paladar humano).

A inovação estava em desenvolver opções que fossem parecidas com a carne animal, recorrendo à fermentação e marinadas para simular texturas – antecipando em muitos séculos a indústria plant-based, conforme informações do livro “History of Meat Alternatives (965 CE to 2014)”, de William Shurtleff e Akiko Aoyagi, referências em história das alternativas à carne e fundadores do SoyInfo Center.

Assim, os budistas chineses adotaram técnicas do “Qímín Yàoshùe as aperfeiçoaram para criar carnes vegetais à base de tofu ou de películas do leite de soja (yuba), usando pressurização, marinada e defumação para imitar carne de frango, porco e peixe (com escamação com cortes de bambu), entre outras inovações.

Eles também se basearam na lavagem da farinha de trigo sugerida no “Qímín Yàoshùpara extrair glúten (miàn jīn) e o transformaram em uma carne vegetal que em 1961 recebeu o nome de seitan, por iniciativa do japonês George Ohsawa, criador da dieta macrobiótica.

Mas a carne de glúten feita pelos budistas, dependendo do objetivo, envolvia mais do que lavagem, marinadas e cozimento – eles também a submetiam à fermentação para criar fibras similares à carne, como no caso do fóròu (carne de Buda).

Para isso, não apenas mergulhavam o glúten em líquidos fermentados (ex: molho de soja ou douchi, que é o feijão-preto fermentado), mas também usavam cultivos de leveduras e o fungo koji (Aspergillus oryzae), o mesmo empregado na produção de shoyu e missô.

Eles desenvolveram alternativas à carne que se destacavam pelo sabor utilizando, além de molhos fermentados, cogumelos ricos em guanilato (como o shitake, que é um potencializador de umami) e kombu, uma alga que é fonte de ácido glutâmico.

Para ser mais específico, no livro “History of Meat Alternatives (965 CE to 2014)” consta que “os monges usavam shitake seco para adicionar umami às carnes de glúten, especialmente em pratos que imitavam pato ou porco” (2014, p. 56). Além disso, o shitake era combinado com algas: “Algas como kombu eram combinadas com shitake e molhos para criar perfis de sabor profundos, semelhantes aos caldos de carne” (p. 61).

É impossível olhar para as carnes vegetais da atualidade e não relacioná-las com o que era feito por budistas chineses que viveram há 1,4 mil anos, e sem a milionária tecnologia usada hoje na produção de carnes vegetais – e claro, eles recorriam a métodos mais naturais e orgânicos de produção, além de considerarem elementos como sazonalidade e uso de recursos, que já faziam parte de valores em convergência com o respeito à terra e uma oposição ao desperdício.

Embora o cogumelo como carne seja visto como uma invenção de nosso tempo, como na exaltação que existe hoje envolvendo os irmãos Sarno e seu “churrasco de cogumelos”, considerado por tantos como extremamente inovador, budistas não apenas desenvolviam assados e já faziam “churrasco de cogumelos” como também usavam esses fungos para desenvolver um tipo de carne-seca. Eles cozinhavam lentamente shitakes secos por horas em um caldo de algas kombu e molho de soja fermentado, até absorverem o líquido e ficarem carnudos.

Depois era feita a prensagem – cogumelos enrolados em panos e colocados sob pedras por um a dois dias, criando fibras alongadas (como carne desfiada). Outra vantagem estava no fato de que o shitake concentra naturalmente guanilato, que é um potencializador de umami cinco vezes mais forte que o glutamato do kombu, agregando um profundo sabor.

Já a defumação da carne à base de cogumelo era feita expondo-os prensados à fumaça de chá preto e casca de laranja para imitar o sabor de carne curada. O resultado era uma textura fibrosa e mastigável semelhante à carne-seca – e que contava com um umami com notas terrosas (do shitake) e salgadas (do molho fermentado).

Hoje, a fermentação natural e cozimento lento, usados não apenas visando preservar qualidade nutricional como também uma imitação funcional (textura/sabor), foram substituídos em nível industrial por enzimas sintéticas, extrusão de proteínas e uso de químicos. Portanto, a sabedoria ancestral foi trocada pela eficiência massiva.

Há estudos que destacam essa técnica milenar como superior às mais novas – como “Umami Enhancement in Plant-Based Foods Through Traditional Fermentation”, publicado em 2022 no periódico Journal of Food Science, que traz a conclusão de que molhos fermentados como douchi e missô geram 28 compostos de umami enquanto aromas industriais replicam apenas dois (glutamato e guanilato) – além do que já citamos sobre o shitake seco ter cinco vezes mais guanilato que os extratos de levedura usados hoje em produtos alimentícios.

Como lembram-nos William Shurtleff e Akiko Aoyagi, os monges foram mais eficazes em replicar uma sinergia que potencializa umami a partir de shitake, kombu e molho de soja. Outro estudo,“Impact of High-Temperature Extrusion on Protein Quality”, publicado na revista acadêmica Nature Food em 2021, enquanto a extrusão, que dá base a carnes vegetais que estão hoje no mercado, reduz 40% da lisina, aminoácido essencial, a fermentação com Koji aumenta biodisponibilidade de ferro e zinco.

Já foi apontado também que a combinação de prensagem manual e fermentação, usada por budistas chineses na produção de alternativas à carne que imitam a carne, cria fibras mais consistentes do que o uso de goma xantana e metilcelulose usada hoje por fabricantes de carnes vegetais, além de proporcionar até mesmo melhor mastigabilidade.

Portanto, podemos dizer também que os budistas chineses não foram apenas pioneiros na criação de carnes vegetais e de carnes de fungos, mas suas técnicas milenares ainda podem ser defendidas como superiores às atuais. Por isso, é importante olhar para o passado para conciliar essas lições e saberes com as necessidades da atualidade.

E devemos lembrar que tudo isso começou com o aperfeiçoamento de técnicas do “Qímín Yàoshù”, um livro escrito em 544 por Jia Sixie, um agrônomo e cientista chinês. Os ensinamentos compilados por ele e baseados na sabedoria popular tornaram-se, nas mãos dos monges budistas, uma verdadeira arte de transformar vegetais e fungos em carnes.

Enfim, os budistas chineses da escola Mahayana não apenas dominaram o processamento do glúten, da soja e de cogumelos, mas desenvolveram métodos para dar a esses ingredientes texturas, formatos e sabores que imitavam com impressionante realismo os produtos animais.

Ademais, se a indústria plant-based se considera hoje disruptiva, o que dizer então dos budistas chineses que já desenvolviam carnes vegetais há 1,4 mil anos?

Saiba Mais

As películas de leite de soja são as que ficam na superfície do leite. Grossa, ela já era usada pelos budistas chineses para imitar carnes fibrosas (como frango desfiado ou peixe). Já a fina era mais usada para recheios. Se recolhida rapidamente, a yuba se mantém fina e delicada, mas se deixar acumular, logo forma camadas grossas (sobrepostas) e fibrosas – perfeitas para carnes vegetais.

Processos-chave aperfeiçoados pelos budistas que foram documentados por Jia Sixie: extração de glúten (miànjīn) e fermentação de feijões (douchi, ancestral do molho de soja), assim como secagem e defumação de cogumelos.

Se hoje, por exemplo, a Impossible Foods usa o tecnológico “heme”, uma levedura geneticamente modificada para imitar a mioglobina (que muita gente confunde com sangue) dos produtos de origem animal, no passado os budistas usavam somente uma combinação eficaz de beterraba e vinagre.

A revolução budista Mahayana

Os monges transformaram técnicas agrícolas em arte culinária usando:

a) Inovação em texturas

  • Glúten fibroso: Prensagem e torção para imitar músculos (antecessor do seitan).
  • Tofu estratificado: Corte e compressão para simular carne de peito.

 

b) Alquimia de sabores

  • Molhos fermentados: Jiang (proto-missô) + douchi para umami.
  • Defumação ritualística: Fumaça de chá preto e cascas cítricas.

 

c) Propósito ético

  • Ahimsa (não violência): Rejeição à morte de animais, mas considerando o interesse por alimentos semelhantes aos de origem animal que já faziam parte do interesse popular.

 

Como era feito o “Frango de Tofu”

  1. Ingredientes base
  • Tofu firme prensado: Feito com coagulante de sulfato de cálcio (gesso) para maior densidade.
  • Glúten de trigo (miànjīn): Adicionado para criar fibras.
  • Molhos fermentados: Douchi (feijão preto fermentado) e jiang (ancestral do molho de soja) para umami.

 

  1. Técnicas de preparo

       a) Texturização

  • Camadas de tofu:
    • Fatias de tofu eram empilhadas e prensadas com pesos por 12–24 horas, criando uma estrutura laminada que imitava músculos.
  • Fibras de glúten:
    • Tiras de miànjīn eram torcidas e enroladas no tofu para simular fibras de carne.

       b) Aparência realista

  • “Pele”:
    • A superfície era escovada com chá preto + açúcar para criar uma cor dourada, como frango assado.
  • “Gordura”:
    • Camadas de tofu menos prensado (mais poroso) eram inseridas entre as fibras para imitar gordura intramuscular.

      c) Sabor

  • Marinada:
    • Mergulhado em caldo de shitake + algas kombu + gengibre por horas.
  • Defumação:
    • Exposto à fumaça de casca de laranja + chá preto para aroma intenso.

 

Como era feito o “Peixe de Tofu”

  1. Ingredientes base
  • Tofu extra-firme: Prensado por dias para remover água.
  • Algas marinhas: Kombu ou nori para sabor e aroma de peixe.
  • Cogumelos shiitake secos: Fonte de umami (guanilato).
  • Fibras de glúten (miànjīn): Para imitar a textura escamosa.

 

  1. Técnicas de preparo

       a) Textura de “carne” de peixe

  • Estratificação:
    • Camadas de tofu eram cortadas em ângulo e intercaladas com nori úmido, simulando lascas de peixe branco.
    • Fibras de glúten eram torcidas e costuradas com linha de algodão para criar a fibrosidade do bacalhau.

 

       b) “Pele” e “escamas” realistas

  • Pele:
    • Folhas de nori eram coladas ao tofu com pasta de arroz.
  • Escamas:
    • Incisões feitas com bambu afiado antes de grelhar.

 

      c) Sabores do mar

  • Marinada:
    • Mergulho em caldo de algas + shiitake + gengibre por 12 horas.
  • Defumação:
    • Fumaça de chá verde + casca de laranja para lembrar peixe defumado.

 

  1. Apresentação clássica
  • Formato: Moldado em barras alongadas (como postas) ou inteiro (com cabeça e cauda de tofu esculpido).
  • Acompanhamentos:
    • Molho de douchi (feijão preto fermentado) para simular “molho de ostras”.

 

Como é feito o Su Shao’e (“Ganso Vegetariano Assado”)

Ingredientes:

  • 4 folhas de tofu seco (doupi) ou yuba

  • 3 cogumelos shitake secos (hidratados e picados)

  • 1 colher de sopa de molho de soja escuro

  • 1 colher de chá de açúcar

  • ½ colher de chá de five-spice powder (ou canela + anis-estrelado)

  • 1 colher de chá de óleo de gergelim

  • 1 xícara de água ou caldo vegetal

  • Bambu cozido ou cenoura ralada para o recheio (opcional)

Modo de preparo:

  1. Prepare o recheio:

    • Refogue os cogumelos (e bambu/cenoura, se usar) com metade do molho de soja e açúcar até ficarem macios.

  2. Monte os rolinhos:

    • Espalhe o recheio sobre as folhas de tofu, enrole como um charuto e feche com palito de dente.

  3. Cozinhe:

    • Doure os rolinhos em uma frigideira com um pouco de óleo.

    • Adicione água, o restante do molho de soja, açúcar e especiarias. Tampe e cozinhe em fogo baixo por 10 minutos.

  4. Finalize:

    • Retire os palitos, pincele com óleo de gergelim e corte em fatias diagonais (como um ganso fatiado).

Dica: Sirva frio como aperitivo ou quente com arroz.

Referências

Shurtleff, W., & Aoyagi, A. History of Meat Alternatives (965 CE to 2014).
Soyinfo Center. Páginas citadas: p. 56, 61, 89–92, 95–97. 2014. Disponível em: Soyinfo Center (gratuito).

Jia Sixie. (544). Qimin Yaoshu [齐民要术Técnicas Essenciais para o Povo]. Edição moderna: Shi Shenghan. 1982. Agricultural Publishing House. Trechos relevantes: cap. 7 (extração de glúten) e cap. 8 (fermentação de leguminosas).

Zhang, Y., et al. Umami Enhancement in Plant-Based Foods Through Traditional Fermentation. Journal of Food Science, 87(4), 1234–1245. 2022. 

Li, H., et al. Impact of High-Temperature Extrusion on Protein Quality.
Nature Food, 
2(8), 356–365. 2021. 

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Jornalista (MTB: 10612/PR) e mestre em Estudos Culturais (UFMS).

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