Chineses consomem leites vegetais há mais de dois mil anos

China antiga foi a primeira civilização a documentar o consumo de leites vegetais

É comum associar leites vegetais à modernidade, mas a história revela que a China já os consumia há mais de dois mil anos. Registros em textos médicos, manuais agrícolas e evidências arqueológicas mostram que soja, arroz e até amendoim eram transformados em bebidas muitos séculos antes das versões industrializadas.

“Huangdi Neijing”, texto médico do século 2 antes da era comum (aec), já mencionava alimentos fermentados de soja. Pouco depois, o manual agrícola “Qimin Yaoshu” detalhava técnicas para produzir dòujiāng (leite de soja) e tofu. Evidências arqueológicas da dinastia Han (206 aec–220 ec), como utensílios e resíduos em cerâmicas, confirmam que a bebida era amplamente consumida.

Essa afirmação já havia sido feita em 1977 pelo historiador Yu Ying-Shih em um dos capítulos de “Food in Chinese Culture” – obra que aborda a alimentação chinesa como um reflexo da história, filosofia e sociedade do país – e então endossada em 2012 no livro “The History of Soybeans and Soyfoods in China”, sobre a relação e a história dos chineses com a soja como importante fonte alimentícia – desde seu cultivo até as inovações culinárias.

Outra confirmação da antiguidade do leite de soja na China veio em 2014, após uma análise sobre resíduos em cerâmicas da dinastia Han feita por uma equipe de pesquisadores chineses liderada por Li Yanping, da Academia Chinesa de Ciências Agrícolas, que é conhecida internacionalmente por seus estudos sobre proteínas vegetais e processamento de soja.

Em 2021, pesquisadores da Universidade da Califórnia, que atuam nas áreas de antropologia alimentar e história da alimentação, publicaram um artigo na revista Food Culture & Society em que afirmam que a China antiga foi a primeira civilização a documentar o consumo de leites vegetais.

Nativa da China e domesticada há mais de três mil anos, a capacidade de adaptação da soja a diferentes climas a tornou um alimento básico no país. Conforme o livro “The History of Soybeans and Soyfoods in China“, a soja passou a ser cultivada em larga escala na China durante a dinastia Zhou (1045-256 aec), mas seu processamento em alimentos líquidos se popularizou durante a dinastia Han.

Outro ponto interessante é que a popularização da soja como fonte de alimentos que passariam a ser vistos também fora da China como alternativas aos de origem animal se deve aos budistas, que já utilizavam tofu, dòujiāng (leite de soja) e seitan (glúten de trigo) para substituir produtos animais, seguindo o preceito da não violência (ahimsa).

“A culinária dos templos budistas na China medieval foi pioneira em criar análogos vegetais de carne e laticínios, tornando a soja um ingrediente central”, afirma Eugene Newton Anderson, professor da Universidade da Califórnia no livro “Food and Environment in Early and Medieval China” (2014).

Além dos derivados de soja, leites de arroz e amendoim são consumidos há séculos na China, com o primeiro tendo surgido na dinastia Tang (618-907) e o segundo na dinastia Ming (1368-1644) – mais uma prova de que a história dos leites vegetais que estão se tornando conhecidos em diversos países no século 21 é muito mais antiga do que a maioria imagina.

Na dinastia Tang, por exemplo, o arroz não era visto apenas como cereal, mas também como base para bebidas doces e cremosas, precursoras dos leites vegetais modernos, segundo o livro “Food in Chinese Culture”. Logo, aplicações que podem parecer exclusivamente contemporâneas, na verdade já eram feitas há mais de mil anos.

Em um artigo sobre as influências budistas na culinária da dinastia Tang, publicado no periódico Journal of Chinese Dietary Culture, o pesquisador Xinyuan Li, da Academia Chinesa de Ciências Sociais, observa também que “mosteiros budistas da era Tang popularizaram bebidas à base de arroz moído e água como alternativa ao leite animal, seguindo preceitos vegetarianos”.

No livro “The History of Soybeans and Soyfoods in China”, o amendoim é citado como base para leites vegetais no sul da China na dinastia Ming: “No século XVI, registros de mercados em Fujian descrevem uma ‘bebida oleosa de amendoim’, similar ao moderno leite vegetal”.

A observação é fortalecida por um estudo publicado em 2019 no periódico Journal of Archeological Science, liderado pelo arqueólogo Jianping Wang, também da Academia Chinesa de Ciências Sociais: “Resíduos em potes de armazenamento Ming contêm traços de amendoim processado em forma líquida, possivelmente para consumo direto.”

Isso mostra que enquanto no Ocidente medieval o leite animal dominava, os chineses já exploravam versões vegetais, uma herança que hoje é global.

 

Técnica tradicional de preparo de leite de soja a partir do “Qimin Yaoshu” (século 6):
  1. Seleção e lavagem dos grãos:
    • Soja era escolhida (grãos inteiros, sem impurezas) e lavada em água fria.
  2. Hidratação e moagem:
    • Os grãos ficavam de molho em água por uma noite (cerca de 8–12 horas) até dobrar de tamanho.
    • Em seguida, eram moídos com água em um moinho de pedra (ou pilão), formando uma pasta.
  3. Filtragem:
    • A pasta era misturada com mais água e coada em um pano de linho ou peneira de bambu para separar o “leite” dos resíduos sólidos (okara).
  4. Cozimento:
    • O líquido era fervido em um caldeirão de ferro ou cerâmica em fogo brando, com constante remoção da espuma para evitar transbordamento.
    • O “Qimin Yaoshu” alertava para não deixar queimar, pois isso amargava o sabor.
  5. Consumo ou transformação em tofu:
    • dòujiāng podia ser bebido puro, adoçado ou fermentado para virar tofu (com coagulantes como sais minerais ou ácido gluconodeltalactona, extraídos de plantas como Gleditsia sinensis).

 

Referências

  1. “Huangdi Neijing” (黄帝内经)
    • Texto médico chinês clássico (século II aec).
  2. “Qimin Yaoshu” (齐民要术)
    • Jia Sixie (século VI). Manual agrícola da dinastia Wei do Norte.
  3. CHANG, K.C. (Org.)Food in Chinese Culture: Anthropological and Historical Perspectives. New Haven: Yale University Press, 1977.
    • (Capítulo de Yu Ying-Shih sobre dinastia Han).
  4. SHURTLEFF, W.; AOYAGI, A. The History of Soybeans and Soyfoods in China. Lafayette: Soyinfo Center, 2012.
  5. LI, Yanping et al. “Analysis of soybean residues in Han Dynasty ceramics”. Journal of Agricultural and Food Chemistry, v. 62, 2014.
    • Academia Chinesa de Ciências Agrícolas (CAAS).
  6. ANDERSON, E.N.; CHASE, L.; SMITH, M. “Plant-based Milk Alternatives in Global History”. Food Culture & Society, v. 24, 2021.
    • Universidade da Califórnia.
  7. ANDERSON, E.N. Food and Environment in Early and Medieval China. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2014.
  8. LI, Xinyuan. “Buddhist Influences on Tang Dynasty Cuisine”. Journal of Chinese Dietary Culture, v. 15, 2020.
    • Academia Chinesa de Ciências Sociais (CASS).
  9. WANG, Jianping et al. “Peanut residue analysis in Ming Dynasty storage pots”. Journal of Archaeological Science, v. 102, 2019.
    • Academia Chinesa de Ciências Sociais (CASS).

 

Leia também:

Crianças que consomem soja podem ter melhor desempenho cognitivo

Estudo da USP aponta benefícios da proteína texturizada de soja para veganos

Um relato sobre a contradição de produzir soja para alimentar animais que serão mortos para consumo

Veganos que demonizam a soja estão errados

Proteína da soja pode reduzir mau colesterol e risco de doenças metabólicas

Estudo conclui que consumo de soja não afeta níveis de testosterona ou estrogênio em homens

Como a produção de soja é financiada por quem come carne

Consumo de tofu pode reduzir risco de doenças cardíacas

Jornalista (MTB: 10612/PR) e mestre em Estudos Culturais (UFMS).

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Faça uma doação à Vegazeta.
Sua contribuição é importante para o nosso trabalho.