Por que se incomodar com alguns tipos de carne, mas não outros?

Na série “Good Girls”, personagem se incomoda com a carne de caça, mas não com a carne que não é de caça. É uma situação que serve para pensar esse relativismo tão comum

No episódio 11 da segunda temporada da série “Good Girls”, Annie (Mae Whitman), que é funcionária de um mercado, é informada que caçadores podem guardar “carne de caça” no frigorífico do mercado durante a temporada de caça “pagando apenas uma pequena taxa”, e o açougueiro pode cortá-la de graça.

A reação de Annie, que se alimenta de animais, é de surpresa e incômodo. Depois ela diz que acha isso nojento. Annie é um exemplo do incômodo seletivo em relação à reprovação de determinadas práticas de consumo, porque ela se incomoda com a carne de caça, mas não com a carne que não é de caça. É uma situação que serve para pensar esse relativismo tão comum.

Claro que é mais fácil encontrar pessoas que antagonizam a carne de caça, principalmente se não a consomem, porque reprovamos com muito mais facilidade aquilo que não praticamos como hábito, e porque não exige de nós esforço em comparação com aquilo que exige de nós uma mudança.

Por outro lado, quem pode dizer que o interesse do animal em não morrer em um matadouro é menor do que o do animal que é morto em uma floresta, em um espaço natural? As pessoas tendem a recorrer à questão ambiental, ao fato de não serem animais criados para consumo, etc.

Mas o motivo humano nunca é relevante para o animal que será morto, e sim o ato de ser morto. Uma pessoa pode falar para outra que, tratando-se de reprovação, não se pode comparar o consumo de um boi com o de um animal silvestre, e seu julgamento será baseado estritamente em uma consideração ambiental que exclui o impacto da experiência individual.

Porém essa mesma pessoa jamais poderá provar que o boi atribui menor importância à sua vida do que um animal silvestre morto para consumo, e vice-versa, mas uso isso como referência porque é bem mais fácil encontrar apoio contra a matança de animais silvestres do que de animais criados para fins alimentícios.

Todo relativismo que converge à preservação de determinados consumos, violências ou explorações envolvendo animais não se sustenta se partimos da perspectiva do impacto que isso tem para quem dele é vítima. E se não fazemos isso, é porque preferimos olhar para os animais ignorando a experiência desses animais.

A série está disponível na Netflix.

David Arioch S.A. Barcelos

Jornalista (MTB: 10612/PR) e mestre em Estudos Culturais (UFMS).

Posts Recentes

O corpo bovino na água foi visto como carne perdida

O corpo bovino na água foi visto como carne perdida, não uma morte a ser…

22 horas ago

Quando uma criança viu o sofrimento de um peixe

Uma criança viu pela primeira vez um peixe sendo tirado da água. Lutava com o…

2 dias ago

O animal não cabe dentro do interesse humano

Ver o interesse dos animais não significa querer ou fazer com que esse interesse prevaleça,…

3 dias ago

Se quem mata animais profissionalmente é cruel, devemos nos perguntar, é cruel em nome de quem?

Há muito tempo quem mata animais no matadouro é associado à crueldade. Encontramos exemplos em…

4 dias ago

A morte é uma libertação para o animal explorado?

Esta semana, quando um boi teve morte súbita a caminho de um matadouro no Paraná,…

6 dias ago

No século 19, Comte observou que humanos estavam tratando outros animais como “laboratórios nutritivos”

Em “A lição de sabedoria das vacas loucas”, Lévi-Strauss cita como Auguste Comte, mais conhecido…

7 dias ago