
É muito comum mesmo no meio vegano se falar em proteínas vegetais como alternativas ou substitutas. Claro que essa é uma forma de dizer que há alternativas ou substitutos aos alimentos de origem animal – de estimular uma troca. Enfim, é um meio de mostrar a alguém que um alimento de origem animal pode ser substituído por um alimento de origem vegetal.
Há nisso uma proximidade que se pensa como de “efeito prático”, já que, como a grande maioria dos consumidores ainda está imersa no consumo de proteína animal, usa-se a ideia de “alternativa” ou “substituto” como contraponto de mais fácil compreensão. Algo como: “Olhe, você pode optar por isso em vez disso.”
No entanto, problematizando esse uso, a ideia de “alternativa” ou “substituto” cria, mesmo que de forma irrefletida, uma hierarquia em que se vejo, apresento e promovo algo de origem vegetal como “alternativa” ou “substituto”, isso favorece o que é de origem animal como “o principal”, já que, diferentemente do produto de origem vegetal, não surge nem existe com caráter alternativo.
Há nisso uma armadilha semântica, porque ao adotar a linguagem da “alternativa” e do “substituto”, mesmo com a melhor das intenções, reforça-se inconscientemente a própria hierarquia que se pretende desconstruir.
Isso ocorre porque tudo que vem depois nessa associação não desconstrói o que é de origem animal como “principal” – e por não sê-lo também pode ser usado nessa dinâmica de linguagem por quem não quer mudar como algo que existe “não para ser”, mas para “tentar ser”.
Ao ser definido como “alternativa”, o produto vegetal está sendo posicionado em relação a um padrão pré-estabelecido. Esse padrão é, invariavelmente, o animal, que no uso desses termos não deixa de ser pensado como “o original”. E dessa forma, mantém-se uma perpetuação do que é de origem vegetal, nessa dinâmica, como algo que surge “à sombra” do que é “legítimo”.
Portanto, se, por um lado, a exploração da “alternativa” e do “substituto” pode ser vista como positiva pelos argumentos já referenciados, por outro, pode ocorrer exatamente o oposto – porque muitas pessoas podem interpretar que não precisam de “alternativas”, de “substitutos”.
Isso permite que questionemos qual seria o impacto de repensar alimentos e produtos de origem vegetal sem que fossem pensados e explorados como meras “alternativas” ou “substitutos”, numa superação dessa associação tão tratada hoje como uma necessidade pragmática.
E se o que se explora também nessa alusão é o aspecto nutricional, mais ainda isso pode ser problematizado. Afinal, nutricionalmente nosso organismo não demanda nada de origem animal e sim nutrientes específicos – logo, não é sobre o alimento, mas sobre o que está no alimento.
Ademais, a ideia da “alternativa” ou “substituto” gera um risco de colocar o produto vegetal em um lugar de carência ou concessão, nunca de excelência ou inovação por si só, como se não pudesse suprir os interesses dos consumidores senão à “sombra” do que é de origem animal. Acredito que podemos e devemos pensar em como superar tais usos.
Talvez possamos também pensar em uma dissociação com termos que surgem ou se popularizaram em relação com produtos de origem animal – ou então podemos nos apropriar deles de uma forma que isso se torne dominante, como já ocorreu com tantas coisas ao longo da história.
Essa reflexão também vale para produtos não alimentícios promovidos como alternativas ou substitutos. Isso não é também somente sobre novos produtos – mas todos aqueles que possam ser promovidos como “alternativas” ou “substitutos”, estreitando uma percepção que não leve a pensá-los como mais do que isso.
Afinal, se proteínas vegetais já eram consumidas, por exemplo, na China, há milhares de anos, porque tratá-las hoje como meras “alternativas” ou “substitutos”?
Se queremos uma mudança cultural mais ampla, precisamos também ponderar sobre possibilidades que tirem o protagonismo do que é de origem animal também em um nível semântico – desmontando a arquitetura mental que coloca o produto animal como centro do prato, da pirâmide nutricional e do imaginário gastronômico.
Observações
Ao se falar em “alternativa a isso ou substituto a aquilo” estabelece-se um padrão de referência que é, invariavelmente, o produto animal. O produto vegetal é, portanto, definido pelo que ele não é e por sua relação de semelhança ou diferença com esse padrão. Isso coloca o produto animal numa posição de originalidade, autenticidade e primazia.
A posição da “sombra” e da carência: Um “substituto” é, por definição, algo que ocupa o lugar de outra coisa na sua ausência. Isso cria uma percepção implícita de que o produto vegetal é uma concessão, um “plano B”, algo que se aceita apesar de não ser o “original”. Ele é julgado pela sua capacidade de mimetizar, e não por seu próprio valor intrínseco. Isso rouba sua identidade própria e seu potencial de inovação.
O problema nutricional reducionista: O organismo humano precisa de proteínas, aminoácidos, lipídios, vitaminas — nutrientes, não de “carne”, “leite” ou “ovos” per se. Ao focar a discussão em “substituir a proteína animal”, reforça-se a falsa ideia de que a proteína animal é um nutriente único e insubstituível, quando, na verdade, é apenas uma fonte específica de um conjunto de nutrientes que podem ser perfeitamente obtidos de outras fontes. A pergunta deveria ser “como obter proteína?” e não “como substituir a carne?”.
O risco de afastamento do público: Muitas pessoas podem rejeitar a ideia de precisar de um “substituto”. Quem se sente confortável e satisfeito com o padrão estabelecido pode interpretar a “alternativa” como algo inferior, uma imitação para quem “não pode ter o real”, e não como uma opção válida e desejável por seus próprios méritos (éticos, ambientais, de saúde ou sensoriais).
Apagamento histórico e cultural: Ao tratar o tofu ou o tempeh, por exemplo, como “substitutos”, ignora-se milênios de história culinária de culturas (especialmente asiáticas) onde esses alimentos sempre foram ingredientes principais, protagonistas de pratos com identidade própria, e não meras alternativas para um pedaço de animal. É uma visão profundamente eurocêntrica e colonial da alimentação. É importante promovemos alimentos que sempre foram vegetais e têm história, sabor e identidade próprios.
Educação e resgate cultural: É importante contar a história real dos alimentos. Por exemplo, mostrar que o tofu não foi inventado para substituir queijo — é um alimento ancestral da culinária chinesa. Promover pratos que são naturalmente vegetais e celebrados por isso: um curry de lentilha, um falafel, um patê de berinjela. Eles não substituem nada; são o que são por direito próprio.
Reapropriação e dominância cultural: Uma alternativa que também pode funcionar para determinados termos que se popularizaram mais como de origem animal é apoderar-se deles até que se tornem amplamente o “normal cultural”. É uma batalha linguística difícil, mas possível.
Ainda sobre a linguagem da “alternativa”: É uma estratégia pragmática de transição, um atalho mental para um público ainda muito centrado no animal. Ela tem sua utilidade tática, mas é uma muleta conceitual que, em longo prazo, seus danos (reforço de hierarquia, apagamento cultural, posicionamento de inferioridade) podem superar seus benefícios.
O objetivo final não deve ser criar um mundo de “substitutos”, mas sim construir uma nova cultura alimentar onde os alimentos vegetais sejam percebidos como o centro, o padrão desejável, e os produtos de origem animal é que se tornem, para quem ainda os consome, as “alternativas” — opções antiquadas, problemáticas e desnecessárias. É uma mudança de paradigma que precisa envolver as palavras que escolhemos usar.
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