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Um humano na pele de um porco

Um dia acordou porco. Arrastaram-no para fora de casa e o enviaram para uma fazenda

Um dia acordou porco. Arrastaram-no para fora de casa e o enviaram para uma fazenda. O humano que não era, não poderia ser, mas era pessoa não reconhecida como pessoa, na forma que já não era e na forma que passou a ser.

Ganharam algum dinheiro com sua forma viva e já era propriedade que não poderia reclamar não propriedade. Número no dorso. Quando tentava dizer palavra, saía guincho ou grunhido. Tamanho bom, ainda não.

Primeira queixa feita foi sobre dentes. Poderia morder, não deveria morder. Desbastaram. Ainda tinha rabo. Deixaram coto. Quis dizer o que não poderia dizer. As frases formuladas só existiam na mente, na encaixotada concepção.

Quando saíam, já não eram palavras. Queria trocá-las, transformá-las. Não poderia. Dizer era receber o não dizer. Se reclamava dor, diziam que não havia dor. Expressão de sofrimento era dissimulada como contentamento.

Tudo que sentia não era negado como sentido, mas davam-lhe outro sentido, um sentido aceitável para justificar o que antes dele já era determinado. Um dia obrigaram-no a sair. Não quis sair. Levou choque. Tremeu, gemeu. Insistiu.

Não queria ir. Colocaram-no no caminhão, arrastando-o por corda. Recebeu incentivo na pele. Choque. Bem doído. Quis dizer e disse, sem dizer, que era humano, que não era porco. Observou outros. Subiam a rampa.

Pensou na impossibilidade não humana, na consciência humana no corpo não humano e que persistia na rejeição do não humano. Reivindicava liberdade para si, não para outros. Ele merecia não estar ali, por tudo que sobre ele era humano, com exceção do corpo, da forma…

Um humano que merece a libertação por ser humano. Os outros, não. De repente, parou de resistir e misturou-se aos outros. Ficou em silêncio observando os porcos que evitou. Morreriam juntos, pela forma, pelo que poderia ser arrancado dessa forma. Chorou.

Leia também “O homem que salvou o porco que ele deveria matar“, “Um porco escapa do abate e volta pelos outros” e “O mau cheiro vem do porco ou da exploração do porco?

Jornalista (MTB: 10612/PR) e mestre em Estudos Culturais (UFMS).

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