Em um mundo de destruição ambiental, a fé pode nos salvar?

Em um mundo de destruição ambiental, a fé pode nos salvar? Mas fé em que exatamente? No filme “First Reformed”, lançado no Brasil como “No Coração da Escuridão”, Paul Schrader traz essa dúvida a partir da figura do reverendo Toller (Ethan Hawke), que é confrontado por Michael (Philip Ettinger), um jovem ativista ambiental que não vê um futuro para a humanidade.

Ele apresenta dados que evidenciam o agravamento da situação no mundo e cita ativistas brasileiros que defenderam a Amazônia e que foram mortos, como José Cláudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo (de quem já contamos a história na Vegazeta), além da freira Dorothy Stang, dos EUA, também morta na Amazônia. Michael chega a um ponto de exaustão em que não vê mais como o ativismo pode transformar a realidade.

Ele usa esses argumentos também para defender que não faz sentido trazer crianças para um mundo que caminha para um colapso. Por isso, Michael não apoia a gravidez de sua esposa Mary (Amanda Seyfried). Ele defende o aborto, narrando como seria o futuro dessa criança em 2050. Exatamente por isso o reverendo é chamado por Mary para conversar com ele.

Dias depois, Toller encontra Michael sem vida, seu corpo na floresta, após ele atirar contra a própria cabeça. Michael havia marcado um encontro com ele naquele local. Queria que Toller o visse, que confrontasse a materialização morta de sua desesperança – sua afirmação corporal da fé como um vazio que deixa a neve vermelha.

As palavras do reverendo, sua interação, não mudam nada em Michael. Toller reconhece isso diante do choque gerado pela vida que já não existe, restando somente um corpo e a exposição de sua carne aberta. A morte de Michael amplia na recepção do reverendo a gravidade do que ele diz.

A combinação de seu ato final e seus valores transformam o reverendo, que internaliza a dor e a luta de Michael. A percepção de Toller muda diante daquela corporalidade destruída, pensada junto com seus argumentos. Já não é mais sobre ouvir, mas sobre como agir.

Michael, no único encontro em que tiveram, leu mais Toller do que o contrário. E a luta de Michael passa a ser adotada pelo reverendo, que começa a refletir sobre as relações de poder que perpetuam também a impossibilidade de transformação que já foi almejada por Michael.

Refletir sobre isso de uma perspectiva estrutural parece nunca ter lhe passado pela cabeça. Isso reflete outros aspectos de sua vida – como a morte do filho no Iraque, que ele internaliza como culpa, ignorando fatores como a própria propaganda do Estado. Isso expõe como Toller vivia uma realidade de culpabilização individual, que ele passa a reconsiderar somente a partir do momento em que reflete sobre a desesperança ambiental de Michael.

Pensando o global a partir do local, Toller descobre que sua igreja é financiada por uma corporação que prospera com a devastação ambiental e que financia o negacionismo climático. Esse ponto expõe uma das armadilhas corporativas tão comuns para silenciar, por antecipação, antagonismos.

Fazer o dinheiro circular onde poderia surgir resistência é uma estratégia que impacta até em organizações que nascem bem-intencionadas, mas se rendem ao poder econômico para a manutenção de uma sobrevivência que não ameace interesses corporativos.

Na impossibilidade de uma saída, a partir de uma conclusão de que “tudo está irremediavelmente contaminado”, Toller decide planejar um “ataque suicida” no dia em que o corporativismo que sustenta sua igreja se reunirá nela.

Toller faz um cálculo utilitarista, já que descobre que tem câncer. Para o ato, ele decide utilizar um colete de bombas construído por Michael pouco antes de se matar e que ele pegou na casa de Mary com a intenção de descartá-lo. No colete, há um patch com uma imagem de José Cláudio e Maria do Espírito Santo.

No entanto, contra a recomendação de Toller, que planejava explodir tudo, Mary, que desconhece seu plano, chega para o evento na igreja. Quando a vê pela janela, ele desiste. Assim, Toller, diferentemente de Michael, ainda está conectado ao mundo, apesar de seu desalento, e busca redenção por meio do amor em vez de usar seu próprio corpo como o veículo de uma destruição que teria mais efeito simbólico, já que isso não colocaria um fim à devastação ambiental.

O filme não traz uma leitura não antropocêntrica, já que centra-se no futuro da humanidade a partir da descrença de Michael e da esperança que ainda existe em Mary, que embora ativista, ao contrário de Michael, resiste ao derrotismo.

É uma obra que permite refletir sobre fé e as relações entre impacto ambiental, saúde mental e armadilhas geradas pelo poder econômico que prospera também na manipulação das contradições.

O reverendo Toller vive na história um processo de “expiação” que consiste em uma vida bastante solitária, evitando relações de afeto, algo que muda com Mary e sua gravidez principalmente após a morte de Michael. Apesar das diferenças, essa destruição familiar o faz pensar na sua própria. Sua culpabilização vem de sua vida pregressa – a perda do filho e depois a separação conjugal que surge como resultado da culpa da morte do filho que recai sobre ele.

A igreja se torna uma forma de se redimir, algo que ele eleva a um novo nível quando começa a refletir sobre a devastação ambiental a partir do contato com Michael. Ele abraça a causa porque, para ele, passa a evocar o sagrado que ele vê corrompido no contexto em que está inserido e que escolheu como meio de expiação e redenção.

O filme termina com ele abraçado a Mary, em um ato aberto de afeto que também personifica um tipo de fé. Ela é um contraponto à desesperança de Michael e à interrompida ira destrutiva de Toller.

Observações

Inicialmente, a fé do reverendo Toller é uma fé individual e expiatória. É uma fé voltada para dentro, um instrumento de autoflagelação para lidar com a culpa pela morte do filho e pelo fim de seu casamento. Sua religião é um refúgio para a dor pessoal, não um chamado para a ação no mundo.

Michael representa um tipo diferente de “fé”: uma fé secular no ativismo, na razão e no chamamento à empatia, que se esvai quando confrontada com a magnitude implacável da crise ecológica e da inércia humana. Sua desesperança é, em si, uma forma de crença invertida, uma fé absoluta na impossibilidade de salvação.

No filme, Paul Schrader faz com que a crise de fé secular de Michael colida com a crise de fé religiosa de Toller. A morte de Michael não ocorre isoladamente como suicídio, mas também como ato para testemunho. Ele força Toller a “ver” a verdade de forma visceral.

O encontro com a desesperança de Michael e, posteriormente, a descoberta do financiamento corporativo reprovável de sua própria igreja, expande sua noção de culpa para uma escala sistêmica. Ele percebe que o mal não é apenas um acúmulo de falhas individuais, mas uma força estrutural organizada – o “poder econômico que prospera na manipulação das contradições”. Sua fé, então, se transfigura. Deixa de ser um instrumento de expiação pessoal e se torna um imperativo radical para a justiça.

Também podemos interpretar o corpo doente (câncer) de Toller como metáfora de um planeta doente; o corpo destruído de Michael como argumento final; e o corpo grávido de Mary como símbolo de um futuro incerto, mas preservado por algum tipo de esperança.

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David Arioch Barcelos

Jornalista (MTB: 10612/PR), mestre em Estudos Culturais (UFMS) com pesquisa com foco em veganismo e fundador da Vegazeta.

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