Veganos que atacam chineses são racistas

O consumo médio de carnes na China é menor do que nos EUA, na Austrália, na União Europeia, na Argentina e no Brasil. Ainda assim, há até mesmo veganos que se referem aos chineses de forma preconceituosa quando o assunto é consumo de carne. Usam como exemplo o “consumo de carne de cachorro e de gato” e o generalizam como se fosse um hábito tipicamente chinês, do qual toda a população participa. Há também quem diga que “chineses comem qualquer coisa que anda ou se move”.

O consumo regular de carne de cachorro e de gato envolve menos de 0,1% da população da China, e a maioria dos chineses sequer já experimentou a carne desses animais, de acordo com uma estimativa baseada em dados da Chinese Animal Protection Network (CAPN) e Humane World for Animals (HWFA). Em termos percentuais e per capita, esse consumo é inferior ao de carne de coelho na Itália ou de carne de cavalo na Bélgica e na França, que são vendidas em açougues e supermercados.

Além disso, os EUA exportam carne de cavalo e a Suíça não vê problema no consumo doméstico de carne de cachorro, desde que a finalidade não seja comercial. Não faço tais observações para relativizar o consumo de carne de cães e gatos na China e sim para apontar uma grande contradição que expõe mais uma faceta do Ocidente tentando se impor como moralmente mais correto – o que é reproduzido também a partir de sujeitos de países ocidentalizados, como o Brasil.

É muito comum o uso do Festival de Yulin como exemplo do “consumo de carne chinês”, um festival que sequer é tradicional, já que surgiu nos anos 2000 em uma pequena cidade da província de Guangxi e que envolve um número ínfimo de chineses em relação à sua população – além de ser estimulado também por turistas dos EUA e da Europa.

Mesmo que ativistas de outros países possam ter uma intenção positiva em relação ao fim do Festival de Yulin, é ilógico tratar o consumo de carne de cachorro e de gato na China como se fosse pior do que o consumo de carne em seu próprio país. Nos EUA, por exemplo, o consumo de carne per capita é o dobro da China.

Ninguém vê a população dos EUA sendo especificamente atacada por isso, ainda que os EUA sejam a maior referência em crueldade animal a partir do sistema intensivo exportado para o mundo. Hoje, 70% dos 80 bilhões de animais terrestres criados globalmente e explorados para consumo são submetidos a esse sistema, conforme dados da organização Proteção Animal Mundial. Quem diz que estadunidenses são bárbaros e horríveis com animais? Porém há até mesmo veganos que dizem isso sobre os chineses – o que expõe um racimo (sinofobia) que passa a ser tratado como se fosse um não racismo.

Segundo a revisão “Food Outlook – Meat Market Review“, publicada pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), somente EUA, União Europeia, Canadá, Austrália, Japão e Coreia do Sul, que somam apenas 12% da população mundial, são responsáveis por 60% do consumo global de carnes. A média de consumo de carnes nos EUA, a mais alta do mundo, segundo levantamento da FAO, é de 124 quilos per capita/ano. Já na Austrália, Argentina e Brasil, seguindo a ordem, a média de consumo é de 121 quilos, 109 quilos e 100 quilos –  enquanto na China o consumo é de 62 quilos per capita/ano.

Além disso, o aumento do consumo de carne na China está relacionado à influência ocidental, assim como ocorreu com o Japão e com a Coreia do Sul. EUA e União Europeia têm dietas que valorizam mais a proteína animal do que a dieta chinesa. “O Estudo da China”, que é resultado de um trabalho liderado pelo bioquímico T. Colin Campbell e deu origem a um livro homônimo publicado primeiro nos EUA, aborda como os chineses sempre tiveram uma profunda relação com os vegetais, mesmo como fontes de proteínas – e que isso mudou de forma mais significativa com a “ocidentalização” dos hábitos chineses.

Mas quantas pessoas normalmente exploram a contradição de um Ocidente que olha o consumo de carne chinês com desprezo quando seu desenvolvimento é resultado da ocidentalização desses hábitos? E os chineses estão longe do maior consumo per capita de carnes por ano. Tradicionalmente, a dieta chinesa é baseada em vegetais. Leguminosas sempre foram usadas pelos chineses como fontes de proteínas. Não por acaso, abordei em outros artigos como os chineses foram pioneiros em carnes e leites vegetais. Na China, a carne nunca foi tradicionalmente tratada como prioridade, mas como complemento, diferentemente também da sua supervalorização ocidental e em países ocidentalizados.

Esses apontamentos que faço não são sobre concordar com o consumo de animais na China, mas refletir sobre o lugar de que falamos e como falamos. A mídia, por exemplo, inclusive no Brasil, e isso inclui também veículos que se voltam ao veganismo e aos direitos animais, explora de forma sensacionalista o consumo de animais na China, como se fosse mais terrível do que em outros países. Há uma reprodução de uma percepção de estranhamento que é menos sobre realidade e impacto do que sobre colonialismo – e que ocorre também de forma irrefletida, impercebida por sua normalização.

Veganos brasileiros que atacam o consumo de carne na China mais do que em outros países que têm um consumo individual de carne muito maior, também não dão atenção ao consumo de carne de cavalo em países europeus, um consumo que é tão marginal quanto o consumo de carne de cachorro na China, que é tratado como se fosse parte dos hábitos de todo chinês.

Ainda assim, não encontramos pessoas se referindo aos franceses e belgas como fazem com chineses – embora a Bélgica tenha o maior consumo per capita de carne de cavalo da União Europeia. Também podemos pensar em outras práticas de outros países que envolvem violência contra animais e que são ignoradas e têm um impacto muito maior numericamente do que o consumo de carne de cachorro na China.

Ativistas em defesa dos animais, coletivos e ONGs deveriam ter o cuidado com a abordagem do Festival de Yulin para não transmitir uma ideia errada que leve ao ódio contra chineses e à disseminação de informações falsas. Há também celebridades que endossam isso de uma forma que faz parecer que a China é uma terra de “comedores de cães e gatos”.

Dependendo da abordagem, isso ignora, por conveniência ou não, que o Ocidente lidera a violência contra os animais para consumo e é quem exporta práticas e hábitos relacionados a essa realidade para outros países. Foi assim que surgiu o sistema intensivo de criação de animais na Ásia, a industrialização da morte de animais, as fazendas industriais. Ou seja, veio da influência dos EUA e dos países mais ricos da Europa que passaram a defender esse sistema como “mais eficiente”.

Críticas veganas ao consumo de carne de cachorro e de gato na China também muitas vezes ignoram que muitos chineses criticam e não apoiam esse consumo – assim como não apoiam o Festival de Yulin. E não são os estrangeiros que estão mudando essa realidade na China, mas sim os chineses. Claro que há apoio internacional, como ocorre envolvendo entidades como a Humane World for Animals (antiga Humane Society International), mas a mudança está ocorrendo com o ativismo chinês.

Eles são os protagonistas dessa realidade, apesar disso ser abordado não apenas pela mídia, como também por ativistas pouco informados, como se a mudança fosse resultado de um “primário engajamento estrangeiro”. Afinal, que lição os EUA, países ricos da Europa, Brasil ou qualquer outro país que mata tantos animais para consumo por ano tem para dar aos chineses quando o seu próprio exemplo é de diária violência e crueldade desnecessária contra animais?

Estima-se, segundo a HWFA, que de 10 a 15 mil cães e mil gatos são abatidos durante o Festival de Yulin. Em 2016, só o Paraná já abatia 15 mil frangos em cinco minutos – 4,6 milhões por dia. E nos últimos dez anos, também de acordo com a HWFA, o marginal consumo de carne de cachorro na China caiu 90% e o de carne de gato em 95% – sendo o de gato até mais marginal do que o de carne de cachorro.

Esse tipo de abordagem contra a China e que reproduz racismo também tende a ignorar importantes mudanças – como o aumento anual de 15% do mercado chinês de proteínas vegetais, segundo levantamento da Euromonitor International. E isso, claro, envolve uma nação que tem uma relação com proteínas alternativas que ultrapassa dois mil anos.

A China também já apresentou um Plano Quinquenal (2021-2025) que inclui proteínas vegetais e carne cultivada como setores estratégicos de segurança alimentar, além de destinar subsídios estatais para empresas que estão desenvolvendo proteínas alternativas. O país tem como meta reduzir o consumo de carne em 50% até 2030.

Saiba mais

A China é a maior produtora global de tofu e seitan (carne de glúten) – responde por 40%, segundo levantamento do Good Food Institute (GFI). Também conta com empresas que já comercializam versões vegetais de carne de frango e de porco a preços mais baixos do que da carne animal, além de ter aprovado o comércio de carne cultivada.

Países de alta renda como EUA, Canadá e Austrália, além da União Europeia, consomem até cinco vezes mais carne per capita que a média global, segundo relatório do World Resources Institute (WRI).

Observação

A carne vegetal e o leite vegetal comercializados hoje no Ocidente e em países ocidentalizados (como o Brasil) são reinvenções de alimentos ancestrais como os que já eram produzidos na China há até mais de dois mil anos, assim como no mundo islâmico medieval no século 10.

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Jornalista (MTB: 10612/PR), mestre em Estudos Culturais (UFMS) com pesquisa com foco em veganismo e fundador da Vegazeta.

2 respostas

  1. Parabéns David ,pelo seu trabalho ,sempre muito certeiro nas suas publicações ,tenho muito orgulho de ter vc como amigo

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