
No Brasil, há uma crescente crença de que a oferta e o consumo de produtos veganos ou plant-based transformarão a realidade, não importando a motivação das pessoas. Essa crença vem com a adoção de uma abordagem do veganismo que se baseia nos EUA e nos países de mais alta renda da Europa.
Essa crença é o que norteia o livro “Como Criar um Mundo Vegano: Uma Abordagem Pragmática”, de Tobias Leenaert, um autor da Bélgica, mas que estudou ativismo profissional nos EUA. Acredito que Leenaert, que já citei em uma pesquisa acadêmica, é bem-intencionado e traz pontos relevantes, como reconhecer que se houver uma grande redução do consumo de carne em países que têm um consumo elevado será inviável futuramente manter essa produção.
A viabilidade da oferta de carne no modelo atual depende de sua alta demanda. Afinal, governos não podem fornecer isenções, subsídios e outros benefícios para setores que estão em irreversível declínio. Portanto a mudança não depende somente de veganos, mas de envolver o máximo possível de consumidores.
Mas, mesmo com o aumento anual da circulação de produtos veganos ou plant-based, o consumo global de carne não está diminuindo e sim aumentando, mesmo nos países onde o veganismo está crescendo. Uma pesquisa da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) e Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) estima aumento de 15% até 2031. No Brasil, o consumo médio de carne é um dos mais altos do mundo – 100 kg/ano, conforme estimativa baseada em dados do Ministério da Agricultura e da Embrapa.
O Brasil está atrás somente dos EUA, Austrália e Argentina. Além disso, a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) divulgou que em 2024 a produção de carnes bovina, suína e de aves atingiu 31,57 milhões de toneladas, sendo considerada a maior já registrada. E segundo o IBGE, no mesmo ano o Brasil bateu recorde de abate de animais, totalizando mais de 6,143 bilhões de frangos, suínos e bovinos.
Todos os anos, publico uma série de matérias na Vegazeta em que exponho como o Brasil está matando mais animais para consumo. Muitos veganos evitam esse tipo de conteúdo porque preferem comemorar um veganismo que cresce paralelo a isso, como se o objetivo do movimento vegano não fosse impactar no consumo de carne e de outros produtos de origem animal.
Mas um crescimento desconectado de uma mudança que gere redução da demanda por produtos de origem animal, não cumpre seu papel, é ineficaz e levanta dúvidas sobre a validade desse crescimento. Afinal, mais animais estão morrendo.
No livro em que Leenaert defende a abordagem pragmática, que também é adotada por veganos no Brasil, ele parte de uma realidade diferente (EUA e Europa) da realidade brasileira, tanto em relação ao poder de compra quanto em relação aos hábitos de consumo – um ponto que faz grande diferença.
O que ele explora sobre consumo condiz mais com os EUA e outros países de alta renda do que com o Brasil, ainda que mesmo nesses países o consumo das novas alternativas aos produtos de origem animal também ainda seja bem limitado. Se você duvida disso, compare com o abismo que existe em relação aos seus equivalentes tradicionais de origem animal.
Segundo uma pesquisa da Euromonitor International (2023), o mercado de alternativas vegetais (plant-based) no Brasil cresceu 42% em 2022. Isso pode parecer incrível, mas representa apenas 0,6% do total de proteínas consumidas no país. Logo seu impacto em um panorama geral é extremamente ínfimo em comparação com proteínas animais.
Além disso, quanto mais se promove produtos que estão distantes da realidade da maioria dos consumidores, menos impacto isso terá, porque não deixarão de ser percebidos como produtos nichados. Claro, podemos comemorar um lançamento, ficar empolgados, mas se não nos importamos com quantas pessoas esse produto pode alcançar, então o objetivo do veganismo é deixado em segundo plano.
O que isso tem mostrado até agora é que a oferta de mais produtos veganos no Brasil não está transformando a realidade nem ajudando a transformá-la, mesmo que o cenário possa parecer extremamente animador para muitos veganos. Não há menos animais sendo abatidos nem consumidos no Brasil. Então o consumo desses produtos, quando não envolve veganos, que são uma minoria, é, no máximo, “um outro” consumo, que acaba tendo o mesmo efeito de qualquer produto focado em um grupo/classe, ainda que se afirme que o objetivo é um “público-alvo amplo”.
Também não vejo empresas de produtos veganos lutando para que seus produtos cheguem a uma grande diversidade de consumidores. Talvez porque não se importem – se focam em uma classe social específica. Mas veganos ignorarem isso é um erro porque carne, leite e ovos não são nichados e não teriam se consolidado dessa forma. Também não garantiriam uma circulação tão elevada desses produtos sem a conquista e manutenção de apoio político institucional. Brasileiros estão comprando e consumindo diariamente mais produtos de origem animal e não há qualquer sinal de que isso vá mudar em breve. Isso não é apenas sobre especismo, é também sobre poder político institucional e influência de consumo.
Também não há amplos debates sobre projetos de lei ou políticas públicas federais que visam melhorar o acesso a produtos veganos, a uma boa alimentação vegana – sobre como é possível ter uma alimentação de qualidade e saborosa sem o uso de animais. Ainda assim, é a partir do meio político institucional que são tomadas as mais importantes decisões sobre quais alimentos e produtos a população terá mais acesso. Muitos veganos têm preguiça desses assuntos, o que também não ajuda e reflete uma incompreensão estrutural da realidade que envolve o sistema alimentar e a exploração animal. Mas se não houver uma mudança significativa, a estimativa para 2030 é de que o Brasil se aproxime dos EUA e chegue a um consumo médio de carne de 110 kg/ano (OCDE/FAO, 2023).
Enfim, comemorar o consumo de determinados produtos quando muitas pessoas não têm acesso a eles, não é favorável ao que se objetiva com o veganismo. Mesmo que o Brasil fosse o maior recordista global de novos produtos veganos, nada disso valeria se o país continuasse batendo recordes de produção e consumo de carne e se esses produtos continuassem restritos a uma pequena parcela da população – porque ainda assim seriam consumos paralelos, sem impacto do primeiro sobre o segundo, expondo uma contradição que não deve fazer sentido no veganismo.
Contar somente com veganos também não funciona, porque são minoria, e quanto a isso, não vejo erro na observação de Leenaert. Porém posso problematizar que ele fala de um lugar onde há muito mais pessoas com maior poder de compra e para quem pode fazer mais sentido a troca de um produto de origem animal por novas alternativas em forma de carnes, leites e queijos vegetais, entre outros.
Esses produtos são priorizados na discussão sobre alternativas aos produtos de origem animal pelo reconhecimento de que o grosso da exploração animal se concentra no uso de animais para alimentação, que torna conveniente o uso de subprodutos animais para outras finalidades. Então se atacamos a base (proteína animal), impactamos em todo o resto.
Ainda que possamos dizer que há outros alimentos veganos ou à base de vegetais que surgiram muito antes da indústria de novas alternativas aos produtos de origem animal e com preços mais acessíveis, esses novos produtos ganham mais atenção e influenciam a percepção pública sobre o consumo no veganismo porque fazem parte de uma nova onda de produtos, com mais tecnologia, mais investimentos, mais divulgação e que tiram até a atenção de outros alimentos e produtos que já eram consumidos muito antes dessas novas alternativas.
Estimulam até uma crença de que são “os primeiros” – que decorre não apenas de uma associação com a crença de que não existiam produtos análogos aos de origem animal (sim, existiam, e até há mais de 1,4 mil anos na China), como também com a cultural impercepção de que todos os humanos consomem alimentos veganos, se tudo que não envolve uso de animais pode ser percebido como vegano – incluindo arroz, feijão, etc.
Isso revela também uma necessidade sobre transformar a percepção sobre o que é uma alimentação vegana e mesmo um produto vegano, visando evocar uma amplitude que escape a um reducionismo que favoreça uma crença de que o que é vegano é somente o que é novidade e o que está distante da maioria. É importante normalizar o que é vegano para facilitar uma aproximação.
Na verdade, podemos e devemos mostrar às pessoas como a maioria delas está até mais próxima de uma alimentação vegana do que imagina, já que, numa média global, apenas 18% das calorias consumidas diariamente são provenientes de produtos animais, segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO, 2021). Ainda assim, a pecuária ocupa 75% das terras agrícolas do planeta, o que expõe uma incoerência que merece ser mais visibilizada e discutida.
Já uma pesquisa do IBGE (POF 2017-2018) estima que no Brasil o percentual de calorias consumidas provenientes de produtos animais pode variar de 15% a 20%, enquanto somente arroz e feijão já fornecem 30% das calorias do brasileiro médio. Isso não quer dizer que devemos comer somente arroz e feijão, mas externa que fomos culturalmente estimulados a superestimar os produtos de origem animal. Mesmo não tendo importância central na nossa ingestão calórica, eles são tratados como mais importantes.
Um problema urgente hoje é que ao compartilhar informações em que motivamos outras pessoas a não consumirem alimentos e outros produtos de origem animal, se elas se depararem com as novas alternativas que, para elas, custam caro, dificilmente se interessarão por uma mudança – o que torna problemático o impacto da maior visibilização de determinados alimentos e produtos que podem levar a uma crença de que as alternativas possíveis são inviáveis, invisibilizando as que são viáveis. Outro agravante também é que há pessoas que só mudarão mediante acesso a determinados produtos e isso também não pode ser ignorado.
Claro, empresas visam lucro e podem não se importar com isso, se o foco é uma classe específica, mas veganos não devem pensar o consumo sem conciliá-lo com o impacto que isso pode ter numa aproximação com o veganismo ou com o que favorece o veganismo. Devemos pensar sempre sob a perspectiva do veganismo, não do mercado e do que o mercado quer que acreditemos numa não conciliação com o que é imanente ao veganismo. Do contrário, estaremos estimulando um novo consumo que é excludente, mesmo quando o crescimento do que interessa ao veganismo depende de ser inclusivo.
Também proponho considerar outros fatores que abordarei a partir de agora, como o crescente foco em determinados produtos no Brasil, um país que não tem uma cultura de alto consumo de industrializados na alimentação como os EUA – embora isso esteja crescendo como fenômeno globalizado influenciado pelos EUA e seu imperialismo cultural baseado em sua referência como nação altamente industrializada.
Se você olhar para os produtos alimentícios que estão sendo vendidos no Brasil como alternativa aos produtos de origem animal, e que têm uma divulgação que chega a mais pessoas ou que são mais facilmente encontrados em supermercados, eles não são diferentes dos encontrados em prateleiras nos EUA. Mas por que estamos imitando-os se temos nossos próprios hábitos alimentares? Isso vem não apenas com a normalização da cultura de fast food exportada pelos EUA, e que continua crescendo no Brasil também por meio de supermercados, como também com a crença de que devemos imitá-los, tê-los sempre como exemplo – portanto um colonialismo internalizado.
Além disso, não é novidade que há empresas no Brasil que preferem replicar o que está sendo feito lá fora, até por ser visto como mais fácil. Mas por que o brasileiro médio, que come ou prefere comer arroz, feijão, alguma carne (que varia conforme seu poder de compra) e salada, incluiria algo inerente ao fast food em sua alimentação diária se isso não é parte de seu cotidiano?
Isso serve para pensarmos a importação de hábitos em forma de proteínas alternativas, além de potencialmente favorecer um enfraquecimento de nossos hábitos por meio de uma “globalização do paladar”. Ainda assim, é pouco provável que isso funcione com tanta eficácia e uso como exemplo o fato de que muitos brasileiros, mesmo quando buscam conveniência, não conseguem assimilar fast food de forma tão normalizada como a população dos EUA. Não por acaso, se comemos assim, logo reconhecemos que não comemos “comida de verdade”.
Então será que produtos veganos ou plant-based industrializados que têm os EUA como exemplo não são problemáticos? O risco também de ir por esse caminho é que podemos ter um futuro em que essas imitações, caso se tornem dominantes entre as alternativas à carne, possam estar ainda mais relacionadas a uma alimentação não saudável, se na busca por imitar produtos de origem animal (em relação à textura e sabor), ignorar e reproduzir até o que é nocivo em relação a eles. Podemos problematizar isso até sob a perspectiva da “sustentabilidade”, se essa produção depende de ingredientes importados – o que significa, claro, mais impacto.
A indústria da carne e o segmento pecuário também podem usar isso contra esses produtos. Afinal, se um produto surge para ser melhor, não há uma contradição? Seria também perder uma oportunidade não fazer o oposto da indústria da carne e seus produtos hoje cada vez mais associados a problemas de saúde.
Admito que às vezes consumo as novas carnes vegetais vendidas em supermercados, mas no cotidiano prefiro alimentos como a proteína texturizada de soja (que tem custo baixo em comparação com a carne animal e permite preparos bem diversificados e saudáveis de carnes vegetais), tofu (que faço em casa e gasto menos de 1/4 em comparação com a versão encontrada no supermercado) e algumas leguminosas.
Outro erro é ignorar que se um produto é oferecido como proteína alternativa, ele precisa pelo menos ter a mesma quantidade de proteínas de um produto equivalente de origem animal. Já encontrei carnes vegetais em supermercados que têm mais carboidratos do que proteínas e até mais gorduras do que proteínas – o que levanta, claro, um alerta.
Há empresas conhecidas nesse meio que têm reduzido a quantidade de proteínas e aumentado a de carboidratos – como notei comparando o atual Futuro Burger da Fazenda Futuro com as primeiras versões. Não sei se há relação com o processo de escalar a produção visando reduzir custos, mas posso dizer que para os consumidores que se preocupam com a proporção de proteínas, isso os afasta.
A mesma consideração pode ser feita sobre as opções de leites vegetais que não fornecem proteínas e que custam de duas a quatro vezes mais do que o leite de vaca – a exceção mais acessível ainda é o leite de soja. Se o consumo de leite está ainda vinculado à sua associação como fonte de proteína, ignorar isso na oferta de alternativas é um erro.
Devemos lembrar também que temos hábitos alimentares tradicionais que já são naturalmente mais vegetais do que de países de onde estamos importando hábitos, como os EUA. Ainda assim, muita gente parece defender que o caminho é manter o foco em muitos produtos altamente industrializados.
Não é sobre demonizar esses produtos ou dizer que não se deve consumi-los, mas reconhecer que essa cultura importada, e principalmente no molde atual, também tem ajudado a perpetuar a distância entre novos produtos e consumidores, além de afastar uma conexão com o que é inerente à nossa alimentação.
Acredito que podemos fazer mais e melhor do que está sendo feito. Precisamos importar menos, inclusive hábitos, e nos focar no que é local também em relação à escolha não apenas de alimentos como de ingredientes para novos produtos. Não é novidade que há um crescente número de produtos veganos ou plant-based que utilizam ingredientes importados – gerando encarecimento e dificultando acesso.
Uma grande oferta de produtos que não se converte em mudanças reais servirá apenas para o agrado de quem não se importa com o aumento de mais pessoas reconhecendo validade nesse consumo – sendo, por reducionismo, uma mera expressão de um veganismo como identidade, exclusivista e com foco na individualidade, se isso é celebrado por veganos que veem isso como uma opção, mas ignoram que não para muitos.
Não há dúvida de que para afastarmos as pessoas da participação na exploração animal é preciso valorizar uma alimentação que possa ser vista como praticável, não irrealista em relação ao orçamento de todos ou pelo menos da grande maioria – o que torna importante conciliar gostos e poder de compra.
Para refletir sobre isso, sugiro uma observação sobre a lógica utilizada pela pecuária para manter sua hegemonia. Ainda que a pecuária e a indústria da carne e de outros produtos de origem animal recebam subsídios do governo, as oscilações de preço não deixam de ocorrer. Mas para lidar com isso e não perder consumidores, esse sistema não deixa as escolhas saírem de sua esfera de controle e influência.
Por exemplo, se a carne bovina é vista como cara e inacessível, o consumidor optará por algum corte de porco ou frango. Ou talvez opte por linguiça, salsicha ou miúdos. Ou, como já ocorreu outras vezes com a crise no preço da carne, pelo ovo. Como reflexo disso, se a demanda por carne bovina cai, aumentam a produção de frango. Se o ovo é a “proteína barata” da vez, investem mais em granjas industriais (o que intensifica também a crueldade animal). É assim que a pecuária e a indústria mantêm sua hegemonia – pela sua abrangência.
Então na motivação para aproximar pessoas do veganismo ou pelo menos do que é relevante ao veganismo é necessário usar a lógica desse sistema contra ele. Se há pessoas que não têm condições de consumir determinados alimentos veganos, o que não significa que não se deva defender a redução do preço deles (e buscar meios para garantir isso), isso não quer dizer que elas não podem ser veganas ou pelo menos ter uma alimentação sem uso de animais. Portanto, para atingir o maior número possível de pessoas é preciso de pluralização – mostrar alternativas atrativas que estejam mais próximas dos interesses de cada um.
A pecuária nunca deixa de atingir todas as classes sociais e é por isso que ela consegue manter sua hegemonia. O mercado de produtos veganos ou plant-based hoje não oferece essa flexibilidade, de ser atrativo para todo mundo, mesmo que todas as pessoas decidissem hoje ser veganas e todas quisessem consumir esses produtos. O custo seria uma barreira. E isso tem ecoado no próprio veganismo, mesmo que não tenha nada a ver com o movimento, mas com a indústria que surgiu em torno dele ofertando novas alternativas aos produtos de origem animal que não são acessíveis à maioria.
Uso como exemplo a experiência de ir tantas vezes ao Super Muffato e na seção de “Saudáveis”, onde generalizadamente ficam os novos produtos veganos ou plant-based, perceber uma certa homogeneização nos perfis dos consumidores, sendo que o êxito para reduzir a matança de animais para consumo depende exatamente da heterogeneidade – já que produtos como nicho não transformam realidades que dependem de um impacto no consumo geral.
Prefiro falar “novos produtos veganos” porque há produtos espalhados pelo supermercado que também são veganos, mas pelos motivos que apresentei antes, não são pensados comumente como veganos. Claro, isso também reflete uma distorção de nosso tempo e um distanciamento influenciado pela indústria desses novos produtos na maneira de comunicá-los.
Hoje também é necessário não apenas mostrar que esses produtos não devem ser essencializados, mas também repensar a indústria em desconexão com um consumo que seja inacessível para muitos. A oferta de produtos veganos precisa romper com a lógica de nicho. Mesmo na afirmação de que tais produtos são também para quem quer reduzir o consumo de carne, ainda se situa em nicho porque se volta a classes bem específicas. Então a ideia do “público-alvo amplo”, reforço, é enganosa e é também por esse motivo que produtos veganos ou plant-based não estão ajudando a desacelerar o consumo de animais no Brasil.
Apostar em uma alimentação mais simples, com alimentos acessíveis, que inclui mostrar que há opções de proteínas de origem vegetal mais baratas do que a carne (incluindo, por exemplo, carnes vegetais caseiras, omelete de tofu caseiro ou de grão-de-bico), e que também têm aplicações muito diversas, é um grande acerto de todos aqueles que no movimento vegano estão fazendo isso – porque eles cobrem uma grande lacuna que rompe com a afirmação do veganismo como inacessível. Além disso, estabelecem uma aproximação com a nossa própria relação tradicional com a comida, em contraponto a um crescente apagamento influenciado por hábitos importados que impactam até no nosso paladar e no que passamos a reconhecer como desejável ou saboroso. Isso destaca também a importância de “educar para o paladar natural”, principalmente quando há uma supervalorização de industrializados.
Isso não é sobre “purismo” ou, repito, dizer que as pessoas não devem consumir produtos industrializados, até porque nem todos os produtos industrializados não são saudáveis. Generalizar isso seria equivocado, já que o problema não está na industrialização e sim no uso de ingredientes e aditivos não saudáveis. É sobre gerar aproximação e valorizar o que está sendo negligenciado. Se olhamos para o básico e tradicional da alimentação brasileira em relação ao consumo de vegetais e alimentos de origem vegetal, não seria presunçoso dizer que os países mais industrializados que deveriam estar nos imitando. Nós que deveríamos estar influenciando, assim como nos focando e visibilizando mais alternativas veganas baseadas na nossa diversidade culinária nacional e regional – e de uma forma que ajude a romper com a crença do veganismo como sendo de difícil acesso.
Outro importante meio de combater a hegemonia da pecuária que leva ao fortalecimento da essencialização de produtos de origem animal é lutar pelo fim dos subsídios à pecuária, que são oferecidos com o dinheiro dos impostos que pagamos, senão continuará sendo uma batalha extremamente desigual. Afinal, produtos de origem animal continuarão levando vantagem sobre todos os outros, se pecuaristas e a indústria continuarem sendo socorridos pelo Estado mesmo quando, por contradição, o tratam como inimigo e o chamam de “intervencionista” – mas claro que isso só ocorre nas situações em que não os beneficia.
E quanto mais a pecuária se revela dependente desse sistema, como hoje, mais isso expõe sua fragilidade. Portanto não dá para ignorar que se o consumo de carne e outros produtos de origem animal é elevado é também porque é impulsionado por governos que, até por medo da não governabilidade, de retaliações de partidos e grupos políticos, acabam sendo condescendentes. Além disso, produtos de origem animal mais baratos não se relacionam somente com a pecuária industrial (que impõe ainda mais crueldade aos animais), mas também com o desmatamento, como já denunciado por organizações ambientais. Não por acaso, esse também é um dos fatores que tem impulsionado as exportações no Brasil. Ou seja, o baixo custo no Brasil em comparação a países com moedas mais fortes ou economias em maior crescimento torna a carne também atrativa fora do Brasil, além de ampliar o lucro da pecuária e, como consequência, fortalecê-la. Isso gera também mais poder político para a mais influente bancada legislativa do país – a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA).
Mas se impactamos no seu custo de produção no Brasil, ao obter resultados apontando os problemas gerados por esses subsídios, e expondo cada vez mais como esse sistema é prejudicial, não apenas favorecemos a redução da produção de carne no país como também impactamos na viabilidade de sua exportação. Até porque hoje não podemos pensar em redução do impacto da exploração animal considerando só o consumo interno, mas também externo, se o país também exporta carne. Além disso, políticas que fortalecem o combate ao desmatamento também são aliadas para enfraquecer a hegemonia da pecuária.
O aumento do consumo de carne precisa ser combatido com urgência porque quanto mais ele cresce, mais benefícios públicos o segmento garante. Isso fortalece a crença de que é mais barato consumir produtos de origem animal – já que se pode transitar pelo que citei antes sobre a hegemonia da pecuária: da carne ao ovo. Há muito tempo, o consumo de produtos de origem animal também foi associado no Brasil à “qualidade de vida”, e menos no sentido de saúde do que de “se comer o que se considera melhor”, com base em um paladar culturalmente moldado.
Dizer que “o feijão tem proteína” não ajuda a motivar alguém a deixar de comer carne e porque o feijão não é visto como substituto na alimentação brasileira e sim como parte de uma combinação com o arroz. É como se você dissesse para o consumidor se privar de algo. Por isso, é importante mostrar alternativas que possam atraí-lo e que sejam realmente acessíveis. Ignorar isso apenas fortalece a hegemonia de um sistema alimentar que supervaloriza proteínas animais.
As pessoas também precisam de um motivo para mudar. Crer que a mera disponibilidade de produtos no supermercado se encarregará de fazer a diferença parece subestimar a importância de uma real motivação. Para a maioria das pessoas, esses produtos ainda não significam nada, são puro estranhamento.
Claro, podemos nos ater ao marketing feito em relação à aceitação de novos produtos veganos ou plant-based e suas possibilidades de transformação. Ou podemos enfrentar a realidade de que a mudança que afetará de forma significativa o consumo e o abate de animais depende de muito mais do que está sendo feito hoje.
Fechar os olhos para o fato de que a exploração animal está crescendo, não vai fazer a realidade desaparecer. Se produtos veganos não estão ajudando a transformar a realidade, então eles se tornam apenas um apêndice do atual sistema alimentar.
Vegano ou plant-based?
Faço distinção entre produto vegano e plant-based, como quando trago “vegano ou plant-based”, porque nem todo produto plant-based é vegano, já que um produto que pode ter uso de animais no processo, ainda que não ingrediente, pode ser classificado como plant-based, diferentemente de um produto vegano.
Sobre novos produtos veganos ou plant-based
Quando falo em novos produtos veganos ou plant-based, não me refiro a produtos que estão chegando agora ao mercado, e sim a partir da década passada, e que se tornaram os produtos percebidos como dominantes até mesmo na consolidação do inacessível quando se pensa em produtos veganos.
O mercado está cooptando o veganismo?
Não acho que o mercado está cooptando o veganismo porque o mercado não tem interesse no veganismo e sim em hábitos de consumo. Para o mercado, não importa se quem está consumindo seus produtos é vegano ou não, mas sim que está gerando lucro. Não por acaso também, seus produtos fogem cada vez mais à definição como vegano – são definidos como plant-based, à base de vegetais, à base de plantas, 100% vegetal, etc.
No entanto, o mercado pode prejudicar o veganismo ao encher os supermercados de produtos voltados para a classe média e classe alta, assim criando uma crença de que o veganismo é inacessível para muitos – portanto favorecendo uma “cultura de nicho” que atrapalha o que é relevante ao veganismo – que é aproximar as pessoas de uma alimentação livre do uso de animais.
Sobre produtos de maior circulação
É preciso evitar também que ao escalar a produção para fazer com que os produtos cheguem a mais pessoas e custando menos, isso seja ao custo de negligenciar a importância da qualidade e da escolha de bons ingredientes. Do contrário, será apenas mais um produto como qualquer outro que inserido na lógica da ampliação do lucro prejudica os consumidores. Ademais, substituir determinados ingredientes por ingredientes mais baratos sem deixar isso claro para o consumidor e sem reduzir o preço do produto para o consumidor final é prática que deve ser reprovada.
Sobre importação de ingredientes
Se temos uma variedade de ingredientes no Brasil que podem ser usados para desenvolvermos nossos próprios produtos, por que estamos importando ingredientes de outros países? Há alternativas à carne e ao leite em que se prioriza o uso de ingredientes populares nos EUA e na Europa, mas que chegaram ao mercado brasileiro de forma extremamente “nichada”, já que são ingredientes caros. Como isso beneficia o veganismo se é voltado para uma minoria?
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2 respostas
Infelizmente, os produtos veganos são extremamente caros para o meu orçamento. Até os não veganos atualmente são muito caros! Os substitutos do leite, são muito ruins, infelizmente. Como muitas verduras e folhas, arroz, feijão etc.
O estilo de vida capitalista, infelizmente, demanda a busca por praticidade ao se alimentar. É aí que as pessoas têm dificuldades em se imaginar veganas. É muito mais fácil jogar nuggets na air fryer depois de um dia extremamente cansativo do que preparar uma refeição ideal, vegana ou não. Tenho achado difícil discutir o veganismo sem questionar esse estilo de vida que vivemos.