A história do veganismo

Percy Shelley, um dos precursores do veganismo (Pintura: Joseph Severn)

“Enquanto o ser humano for implacável com as criaturas vivas, ele nunca conhecerá a saúde e a paz. Enquanto os homens continuarem massacrando animais, eles também permanecerão matando uns aos outros. Na verdade, quem semeia assassinato e dor não pode colher alegria e amor”, disse o filósofo grego Pitágoras por volta de 500 anos antes de Cristo.

No mesmo período, Siddhārtha Gautama, o Buda, conversou com seus seguidores sobre a importância da alimentação isenta de ingredientes de origem animal. Assim, Pitágoras e Siddhārtha tornaram-se as primeiras referências de uma consciência que mais tarde ajudaria a moldar o veganismo.

Muito tempo depois, no século I, o filósofo grego Plutarco escreveu “Do Consumo da Carne”. No “Discurso Primeiro”, ele define o apetite humano por carne como uma manifestação de luxúria, lascívia supérflua. “Aos inocentes, aos mansos, aos que não têm auxílio nem defesa – a esses perseguimos e matamos. Só para ter um pedaço da sua carne, os privamos da luz do sol, da vida para que nasceram. Tomamos por inarticulados e inexpressivos os gritos de queixume que eles soltam e voam em todas as direções”, registrou.

Mas foi só a partir do século XV que houve um crescimento exponencial de pensadores e artistas que viram no vegetarianismo um meio de contribuir para a libertação animal e humana, já que ao alimentar-se da carne o ser humano torna-se prisioneiro de si mesmo, das suas próprias incoerências.

“Gerar filhos que saciem seu paladar”

“Além de ajudá-los, aproxima-se deles para que possam gerar filhos que saciem seu paladar, assim criando sepulturas para todos os animais. E devo dizer mais, se me for permitido dizer toda a verdade: Não acha que a natureza já produz alimentos o suficiente para que se satisfaça?”, questionou Leonardo da Vinci em citação publicada na obra “Quaderni D’Anatomia – I-VI“, preservada na Inglaterra pela Biblioteca Real de Windsor.

Em 1580, o filósofo e humanista francês Michel de Montaigne publicou o livro “Ensaios”, dando origem ao gênero situado entre o poético e o didático. E foi nessa obra que dedicou espaço para comentar que as índoles sanguinárias do ser humano em relação aos animais atestam propensão natural à crueldade.

“Em Roma, depois que acostumaram-se aos espetáculos de mortes dos animais, chegaram aos homens e aos gladiadores. A própria natureza, temo, fixou no homem um instinto de desumanidade. Perdera-se o prazer de ver os animais brincando entre si e acariciando-se; e ninguém deixa de senti-lo ao vê-los dilacerarem-se e desmembrarem-se. Os animais foram sacrificados pelos bárbaros para os benefícios que deles esperavam”, enfatizou.

Para Montaigne, a ideia da superioridade do ser humano diante dos animais corrobora a máxima presunção e um falso direito de violência sobre outras espécies. Ele defende que, como racional, o ser humano tem um dever moral em relação aos animais, seres que têm vida e sentimento.

Primeiras obras dedicadas ao vegetarianismo 

No século XIX, surgiram as primeiras obras dedicadas ao vegetarianismo. E o que impulsionou a concepção mais moderna de vegetarianismo foi o romantismo, movimento artístico, político e filosófico que fez oposição ao iluminismo e ao racionalismo. Pautando-se na natureza, os românticos exaltavam os animais e apontavam as falhas humanas embasadas na crença supremacista.

“Envolvido em um turbilhão social, basta que ele não se deixe arrastar nem pelas paixões, nem pelas opiniões dos homens; veja ele pelos seus olhos, sinta pelo seu coração; não o governe nenhuma autoridade, exceto a de sua própria razão”, declarou o suíço Jean-Jacques Rousseau, precursor do romantismo e defensor do vegetarianismo, em “O Bom Selvagem”.

Em 1802, Joseph Ritson lançou o livro “An Essay on Abstinence from Animal Food: as a Moral Duty”, seguido por “The Return to Nature, or, a Defense for the Vegetable Regimen”, de 1811, escrito por John Frank Newton. Em 1813, Percy Bysshe Shelley publicou “A Vindication of Natural Diet”. Já em 1815, William Lambe endossou o discurso a favor do vegetarianismo com a obra “Water and Vegetable Diet”.

Esses quatro escritores britânicos, que também eram ativistas vegetarianos e lutavam pelos direitos animais, tornaram-se precursores do que conhecemos hoje como veganismo. Suas inspirações vieram de pensadores como Pitágoras, Plutarco e John Milton.

O “monstro” vegetariano de Mary Shelley

Por causa da estreita relação entre romantismo e vegetarianismo, a escritora britânica Mary Wollstonecraft Shelley, então esposa de Percy Bysshe Shelley, publicou em 1817 o famoso romance gótico “Frankenstein”. Em uma das passagens do livro, o monstro vegetariano criado por Victor Frankenstein, repudia o hábito humano de alimentar-se de animais:

“Não tenho que matar o cordeiro e a cabra para saciar o meu apetite. Bolotas e bagas são o suficiente para a minha alimentação. Minha companheira vai ser da mesma natureza que a minha, e vai se contentar com o mesmo que eu. Faremos a nossa cama de folhas secas; o sol vai brilhar sobre nós da mesma forma que brilha sobre os homens, e ele vai amadurecer a nossa comida. A imagem que apresento a vocês é humana e pacífica.”

O filósofo utilitarista britânico Jeremy Bentham também advogou pelos animais até falecer em 1832. Afirmava que eles sofrem tanto quanto os seres humanos e qualificou a defesa da superioridade humana como uma forma de racismo. No entanto, foi somente na Inglaterra de 1847 que surgiu formalmente a primeira Sociedade Vegetariana, presidida por James Simpson e vinculada à Bible Christian Church.

Três anos depois, Sylvester Graham, inventor da popular indústria Graham Cracker, fundou nos Estados Unidos a Sociedade Vegetariana Americana. Ministro presbiteriano, Graham incentivava seus seguidores a levarem uma vida virtuosa pautada no vegetarianismo, na moderação e na abstinência, assim como já faziam no Oriente os seguidores do budismo, hinduísmo e jainismo.

Pioneiro da teoria moderna dos direitos animais

Algumas décadas depois, o protovegano Henry Salt, que se tornaria um dos pioneiros da teoria moderna dos direitos animais, fez oposição à Vegetarian Society, da Inglaterra, na promoção do consumo de ovos, laticínios e mel como parte de uma dieta que eles consideravam a mais adequada aos “vegetarianos”. Salt sabia que o abandono do consumo de outros alimentos de origem animal era o único e verdadeiro caminho do vegetarianismo ético.

Até porque consumi-los significaria não apenas compactuar com a exploração animal, mas também reconhecer que são alimentos disponíveis para consumo humano. No ensaio “A Plea for Vegetarianism”, publicado em 1885, ele declarou que mesmo os produtos lácteos são desnecessários e, sem dúvida, serão “dispensados completamente sob um sistema de dieta mais natural”. Em 1897, a pioneira Sociedade Vegetariana inglesa já contava com cinco mil membros.

Pioneirismo de Carlos Dias Fernandes no Brasil 

No Brasil, um dos divulgadores do vegetarianismo era o jornalista e poeta paraibano Carlos Dias Fernandes, autor do livro “Proteção aos Animais”, de 1914. Na obra, Fernandes, que não era religioso, cita religiões e crenças que endossam o papel do ser humano como protetor dos animais e da natureza. Polêmico, chegou a discutir com profissionais de saúde da época que defendiam o consumo de carne. Talvez o maior exemplo tenha sido a sua rixa com o então conceituado médico José Maciel.

A seu favor, o poeta e jornalista tinha o médico higienista Flavio Maroja que publicou no jornal A União de 30 de agosto de 1916 um artigo intitulado “Hygiene Alimentar: Regimen Vegetariano e Regimen Carneo, confronto de opiniões, como penso a respeito”, que fala dos benefícios do vegetarianismo.

Em 26 de janeiro de 1917, Carlos Dias Fernandes comemorou a fundação da Sociedade Vegetariana Brasileira, sediada no Rio de Janeiro, e publicou matéria sobre o assunto. “Vai ganhando surto em todo mundo civilizado o regime vegetariano como solução prática do problema moral, economico e therapeutico dos povos. (…) Vegetarianismo quer dizer vida de accôrdo com a natureza”, registrou.

Gandhi defendeu o não consumo de carne como questão ética 

Em 1931, e de volta a Londres, o indiano Mahatma Gandhi ingressou no comitê executivo da Sociedade Vegetariana e deu um discurso argumentando que a alimentação livre de carne era uma questão de ética, não de saúde. Sem demora, surgiram discussões sobre o tratamento dado às galinhas e vacas leiteiras. Os debates foram transformados em artigos publicados no boletim informativo Vegetarian Messenger, dividindo opiniões.

Receosos com o que viria a ser o veganismo, muitos vegetarianos enviaram cartas queixosas à Sociedade Vegetariana. Eles entendiam a consistência moral e ética de abdicar de todos os alimentos de origem animal, porém consideravam o que seria chamado mais tarde de veganismo como impraticável. Alegaram que por ser uma forma mais radical de vegetarianismo, seria impossível atrair novos adeptos, assim como seria difícil encontrar comida vegana em encontros sociais.

O nascimento do veganismo como conhecemos hoje 

Em agosto de 1944, o marceneiro Donald Watson, secretário da Sociedade Vegetariana de Leicester, tentou garantir a criação de uma seção para publicação de artigos sobre o que seria o veganismo. A proposta foi declinada pela entidade.

Então, no início de novembro do mesmo ano, Watson reuniu cinco vegetarianos éticos no Attic Club, em High Holborn, Londres, para discutir sobre a criação do veganismo, um movimento que seria um aperfeiçoamento do vegetarianismo, ou seja, que pudesse beneficiar muito mais os animais. Watson se incomodava com o fato de que muitos vegetarianos da época se alimentavam de ovos e laticínios.

O grupo enfrentou forte oposição, mas perseverou. Também inventou um novo termo – vegan (vegano) – em referência a quem não consome nada de origem animal. Além de vegan, princípio e fim de “vegetarian”, entre os nomes sugeridos estavam “dairyban”, “vitan” e “benevore”. “Foi o início e o fim do vegetariano”, disse Donald Watson, fundador da The Vegan Society, que tinha Elsie Shrigley como cofundadora.

No início, em vez da pronúncia “vígan”, os adeptos começaram a pronunciar “víjan”. À época, o marceneiro criou o boletim informativo Vegan News, que poderia ser adquirido por uma moeda de dois pences. Na publicação, ele deixou claro qual era a pronúncia correta.

Adesão do escritor George Bernard Shaw ao movimento

A primeira edição foi lida por mais de 100 pessoas, incluindo o renomado escritor irlandês e defensor do vegetarianismo George Bernard Shaw, que ao saber a verdade envolvendo a produção de leite e ovos, abdicou completamente do consumo. E o que ajudou Watson a popularizar o veganismo foi o fato de que 40% das vacas leiteiras da Grã-Bretanha contraíram tuberculose em 1943.

“Animais são meus amigos…e eu não como meus amigos. Enquanto formos os túmulos vivos dos animais assassinados, como poderemos esperar uma condição ideal de vida nesta terra? […] Quando um homem mata um tigre, ele chama isso de esporte, mas quando um tigre mata uma pessoa dizem que isso é ferocidade”, registrou Shaw em seu diário.

Em novembro de 1945, a Vegan Society mudou o nome do boletim informativo de Vegan News para The Vegan. Com mais de 500 assinantes, eles publicavam receitas, notícias, classificados e uma lista de produtos livres de ingredientes de origem animal. Com a popularidade do veganismo, surgiram livros como “Vegan Recipes”,de Fay K. Henderson e “Aids to a Vegan Diet for Children”, de Kathleen V. Mayo.

Objetivos mais bem definidos em 1949

Outra curiosidade é que somente em 1949 a Vegan Society definiu com clareza os objetivos do veganismo, e por sugestão do teólogo e vice-presidente da entidade, Leslie J. Cross, “vegano” desde 1942. Ele sugeriu que a prioridade seria a luta pelo fim da exploração animal no que diz respeito a alimentos, commodities, trabalho, caça e vivissecção.

Interessante também é o fato de que Cross, preocupado em oferecer opções aos veganos, fundou a Plantmilk Society em 1956, dando origem à produção de leite de soja, orchata, maionese vegana e barras de chocolate e de alfarroba sem ingredientes de origem animal. Mais tarde, sua indústria se tornaria uma das maiores distribuidoras de leite de soja do Ocidente.

No continente americano, a iniciativa pioneira foi da Vegan Society dos Estados Unidos, fundada na Califórnia por Catherine Nimmo e Rubin Abramowitz em 1948. A princípio, eles baseavam-se nas ações da inglesa Vegan Society, inclusive distribuíam boletins informativos do The Vegan, antigo Vegan News. Em 1960, H. Jay Dinshah criou a Amerian Vegan Society (AVS), aliando veganismo e ahimsa, princípio ético-filosófico, muito comum no budismo e no hinduísmo, que consiste em não causar mal a outros seres vivos.

Em 1979, a Vegan Society informou que, além da exclusão de todas as formas de exploração e crueldade, se dedicaria a promover o desenvolvimento e criação de alternativas sem uso de animais, beneficiando também o meio ambiente. Com o crescimento do veganismo no mundo, a organização instituiu em 1º de novembro de 1994 o Dia Mundial do Veganismo (ou Dia Mundial Vegano) em comemoração aos 50 anos de fundação da entidade. No entanto, o objetivo maior sempre foi promover a conscientização sobre a exploração animal.

Saiba Mais

Antes de falecer aos 95 anos, em 16 de novembro de 2005, Donald Watson concedeu uma entrevista ao seu amigo George Roger, argumentando que veganismo não trata-se apenas de buscar alternativas para ovos mexidos ou um bolo de Natal. “É algo realmente grande, que desconhecíamos quando criamos o veganismo, criticado por muitos, mas sobre o qual ninguém tem nenhuma prova contra. Se você é vegetariano, saiba que falta apenas um salto para tornar-se vegano”, enfatizou Watson.

O termo “vegan” apareceu pela primeira vez em um dicionário em 1962. No Dicionário Ilustrado Oxford o termo era definido como um vegetariano que não consome manteiga, ovos, leite e queijo.

No século 19, Percy Shelley e Willam Lambe já defendiam que laticínios e ovos deveriam ser excluídos da alimentação vegetariana. Shelley foi uma das mais importantes referências para Donald Watson.

Referências

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Vangensten, Ove C.L. Fonahn A. H. Hopstock. Christiana: J. Dybwad. Leonardo da Vinci. Quaderni D’Anatomia, I-VI. Windsor Castle, Royal Library (1911-1916).

Montaigne, Michel de. Os Ensaios: Uma Seleção. Companhia das Letras (2010).

Fortes, Luis Roberto. Rousseau: o bom selvagem. 2º ed. – São Paulo: Humanistas: Discurso Editorial (2007).

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Shelley, Percy Bysshe. A Vindication of Natural Diet: Being One in a Series of Notes to Queen Mab (Disponível em ivu.org)

Bellows, Martha. Categorizing Humans, Animals and Machines in Mary Shelley ’s Frankenstein – pg. 6. University of Rhode Island (2009).

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Sena, Fabiana. A tradição da civilidade nos livros de leitura no Império e na Primeira República. João Pessoa, PB. Tese de doutorado. PPGL/UFPB (2008).

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Henderson, Archibald. George Bernard Shaw: Man of the Century. N.Y. Appleton-Century-Crofts (1956).

Vegan Society – History. We’ve come a long way. Disponível em https://www.vegansociety.com/about-us/history

Suddath, Claire. Brief History of Veganism. Time Magazine. Disponível em http://time.com/3958070/history-of-veganism/

A History of Veganism. A Candid Hominid. Disponível em http://www.candidhominid.com/p/vegan-history.html

Davis, John. Were There Vegans In The Ancient World? Veg Source. Disponível em http://www.vegsource.com/john-davis/were-there-vegans-in-the-ancient-world.html.

Roger, George. Interview with Donald Watson (2002). Disponível em http://www.abolitionistapproach.com/media/links/p2528/unabridged-transcript.pdf

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Jornalista e especialista em jornalismo cultural, histórico e literário (MTB: 10612/PR)

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