Agustina Bazterrica coloca humanos no lugar de outros animais em “Saboroso Cadáver”

Foto: Nacho Doce

A escritora argentina Agustina Bazterrica coloca humanos no lugar de outros animais na obra “Saboroso Cadáver”. Uma pandemia torna impossível o consumo de animais não humanos. Para compensar a demanda por carne, surge a criação de animais humanos para esse fim. A maneira como isso ocorre segue os moldes da pecuária industrial, intensiva.

O que intriga nessa construção distópica, que baseia-se também nas contradições de nossos hábitos, é que criar humanos para consumo permite que não sejam vistos como humanos. E então nem são mais chamados de humanos. Ou seja, há novas rupturas entre os humanos.

Ponderando sobre a realidade, animais criados para consumo também não são vistos e percebidos como os animais que são – mas como bens móveis que devem satisfazer um interesse alimentar. Podemos dizer que são animais, mas se nossa percepção é viciada pelo consumo, são “animais de comer”. No entanto, sendo animais, realmente são de comer?

Na distopia, é o desejo pela carne não humana, já impossível, que impulsiona o desejo pela carne humana. Há uma transição de uma violência à outra, de um barbarismo ao outro, de uma banalização à outra – algo que já era abordado e discutido antes da Era Comum.

A visceralização e as permissividades do desejo pela carne são intensificadoras. Há uma referência ao lingchi, a morte por mil cortes, com a diferença de que a técnica de tortura usada em guerras passa a ser praticada por um hedonismo esvaziado moralmente.

Ou seja, para que partes sejam removidas e consumidas com alguém ainda vivo, num contexto familiar. Recordei-me de Armin Meiwes, o Canibal de Rotemburgo, que conheceu um homem no Canibal Café, de quem comeu partes ainda vivo.

Em “Saboroso Cadáver”, humanos criados para consumo têm as pregas vocais removidas, o que remete também ao silenciamento dos animais, a dissimulação do interesse e da possibilidade de reivindicação ou contestação.

O viver então é condicionado à brevidade do “ser útil”, que é morrer para servir ou servir para morrer e então servir de novo. Não é sobre isso a miserável vida dos animais que comemos?

Jornalista e especialista em jornalismo cultural, histórico e literário (MTB: 10612/PR)

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