Há ambientalistas que defendem que uma alternativa contrária ao sistema atual de consumo de carne é a caça, e que é uma prática de “menor impacto”. Há pessoas que se identificam como ambientalistas que até adotam a caça como parte de seu estilo de vida em oposição à aquisição de proteína animal por meio do comércio ou da criação de animais.
Sem priorizar a questão do impacto dessa prática para o animal que será morto, afinal, toda morte para alimentação resulta de uma imposição, já que animais, em nenhum contexto, se oferecem para morrer, acredito na validade de pensarmos em nossas ações como se não devessem ou pudessem ser praticadas somente por nós mesmos.
Quero dizer, quando queremos uma transformação de hábitos de consumo e promovemos isso com o objetivo de motivar outras pessoas, estamos tencionando universalizar nossa prática. Pessoas, por exemplo, que apresentam motivos para que outras não se alimentem de animais buscam isso, e porque realmente se tem como objetivo a universalização; porque há também mais motivos ambientais favoráveis a não se alimentar de animais do que o oposto.
Agora imagine se a defesa da caça para consumo fosse universalizada como uma grande oposição ao impacto industrial da carne, à aquisição de carne em açougues e supermercados. Há animais o suficiente para que a população possa caçar sem gerar problemas ambientais? Todas as pessoas teriam condições de caçar?
Mesmo que isso fosse possibilitado para a maioria, não é difícil concluir que, além de ser impossível não gerar também um grande impacto ambiental, e agravar o desequilíbrio ecológico (não foi o consumo de determinados animais que levou ao consumo de outros?), seria preciso recorrer à disseminação artificial de animais para que o maior número possível de pessoas pudesse participar – o que entraria em conflito com o próprio sentido da caça que se visa defender.
Usar o exemplo de um período precedente à industrialização não é coerente se o objetivo é legitimar a matança de animais baseada na caça; mas faz sentido na inspiração de práticas agrícolas (cultivo de vegetais) de menor impacto ambiental e em interação com a floresta. Hoje está cada vez mais claro que quando consumimos proteínas de origem vegetal, estamos sendo também mais práticos, consumindo diretamente o que é possibilitado a partir do solo, da terra. E se essa é uma realidade possível hoje, e que pode ser estendida a todo mundo, com a promoção correta, por que não incentivá-la?
Acredito que vivemos num tempo em que é muito melhor promovermos aquilo que podemos universalizar, e que pode ser benéfico para todos, assim sendo também mais inclusivo e praticável, do que promover algo que sequer teria lógica como universalização. A caça não pode ser hoje um hábito a ser adotado; e sequer envia uma mensagem positiva. A prática de caça também depende de ter armas, o que não parece também uma boa ideia – ainda mais se pensarmos no impacto dessa universalização.
Se nossa preocupação realmente é ambiental, mesmo quando adotamos uma prática que consideramos mais favorável ao meio ambiente, sua incoerência está na impossibilidade de não poder ser praticada por todos ou pela maioria. E nesse caso, se fosse, impossivelmente o resultado seria favorável ao meio ambiente; muito pelo contrário.
Defender a caça para consumo hoje como uma ação com motivação ambiental é extremamente problemático, além de contraproducente. É essencialmente excludente e também em relação à inconsideração por outros animais, já que impacta também em animais que são parte da natureza e que também têm valor inerente.
A verdade é que pessoas que dizem ter motivações ambientais, quando adotam hábitos que não podem ser reproduzidos pela maioria (e porque também essa adoção seria terrível pelos motivos já elencados), estão em uma zona de excepcionalismo que em nada ajuda a transformar para melhor a realidade. Enfim, tudo que não pode ser universalizado, mesmo quando paradoxalmente há boa intenção, ou se afirma haver, é equivocado se é da universalização que depende uma grande mudança.
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