É coerente atuar em defesa do meio ambiente ou pelo menos ter uma preocupação com o meio ambiente e continuar consumindo carne? Há pessoas que podem usar os mais diversos argumentos para defender “o seu consumo de carne”; como afirmar que só comem os poucos animais que criam e que não estão desmatando nada para criá-los nem favorecendo grandes emissões de carbono (seria preciso levar em conta também a procedência do que é destinado ao consumo desses animais).
Também podem dizer que comem pouca carne ou que, mesmo não criando os animais que comem, conhecem todo o histórico de origem do que consomem e que está tudo bem. Mesmo que isso seja verdade, e que esse argumento seja usado para rebater o apontamento de que estão contribuindo com o desmatamento e com o aquecimento global, ao consumir animais essas pessoas não deixam de enviar uma mensagem de que o problema não é comer carne.
Há uma questão simbólica que persiste em relação aos nossos hábitos, que é o que transmitimos a partir do que fazemos e não de como fazemos. Se consumir carne, hoje mais do que nunca, é gerar impacto ambiental, e porque o acesso à carne que chega à maioria é indissociável dos sistemas de grande produção, o que quem come carne sem recorrer a esse sistema, e porque tem condições de estar fora dele, transmite aos outros?
É difícil ignorar que enviamos uma mensagem muito mais forte de antagonismo aos males ambientais da carne não a consumindo do que buscando uma alternativa para não deixar de comê-la, e uma alternativa que sequer pode ser uma realidade para a maioria. Há estudos, como de Joseph Poore, que mostram que chegamos ao sistema de produção atual por causa da alta demanda por carne. Então o que seria melhor em reprovação a esse sistema do que não consumir carne?
Outro ponto é, quem se preocupa com o meio ambiente e assim com a fauna silvestre, ao ignorar os interesses de outros animais, não transmite uma mensagem de que o seu critério é somente o papel ecossistêmico de um animal? Portanto nessa consideração o animal não importa como indivíduo, mas o que se vê como uma função desse animal no contexto da natureza.
Mas quando um animal reduzido à carne tem um interesse diferente em não ser prejudicado pela má ação humana em comparação com um animal silvestre? Animais sempre têm interesses análogos, não importando se são silvestres, domesticados, domésticos…
A crença de que os animais existem para desempenhar determinadas funções, e por isso que devem ser protegidos, é problemática; não foge a uma percepção especista da natureza. Afinal, podemos concluir que na ausência do reconhecimento de uma função que consideramos importante, então o animal é irrelevante. Isso é, logicamente, ignorar o interesse do próprio animal pela vida.
Acredito que quando partimos da consideração por outras formas de vida, e porque essas formas de vida têm interesses próprios, e que não devem ser meramente condicionadas aos nossos interesses, expressamos um olhar menos utilitário da vida – que faz parte da tradição antropocêntrica de inclusão para exclusão.
Falar em meio ambiente hoje pensando somente em nós, no impacto que isso pode gerar em nossas vidas, ou considerar outras vidas à medida do impacto de que prejudicá-las nos prejudicaria, é algo que deve ser superado. Quem pode provar que não foi essa inconsideração por outras vidas que nos trouxe ao cenário atual? Devemos insistir nisso?
A defesa de que está tudo bem em comer carne insere-se nessa consideração seletiva e paradoxal em que, ao mesmo tempo em que se pensa na importância da vida, no bem a ser feito a quem hoje depende da intervenção humana para não ser prejudicado, expressamos uma visão e ação limitadas pelas conveniências das quais não queremos nos livrar.
Se hoje há uma necessidade de intervenção humana é porque foi também a intervenção humana que causou os problemas dos quais hoje queremos nos livrar. Enfim, ainda em relação ao consumo de carne, se o meio ambiente é importante porque a vida é importante, e não somente a nossa, como subtrair a contradição da comum ação em que se insiste em crer que há vidas que desnecessariamente podemos destruir?
Saiba Mais
Vale lembrar que não apenas a carne, mas outros produtos de origem animal também geram um preocupante impacto ambiental – como laticínios e ovos.
Em 2023, o governo brasileiro reconheceu não apenas o impacto da carne no meio ambiente, mas também da produção de leite e derivados. Clique aqui para saber mais.
Um estudo intitulado “Reducing food’s environmental impacts through producers and consumers”, publicado na revista Science, mostra que se a humanidade abdicasse do consumo de carnes e de laticínios, o uso de terra para fins agrícolas poderia diminuir em mais de 75%.
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