É correto sacrificar animais para o nosso alívio?

Uma reflexão a partir do livro “O Olho Mais Azul”, de Toni Morrison

No romance “O Olho Mais Azul”, de Toni Morrison, há uma passagem em que Soaphead Church quer matar o cachorro Bob, alegando que “acabaria com o sofrimento do animal”. O “problema” de Bob era a velhice, com a qual, segundo a narradora, ele já tinha se adaptado.

Soaphead, na verdade, estava preocupado, conforme Morrison, com “o seu próprio sofrimento”, não do animal – porque a velhice de Bob o incomodava. Como Bob não é humano, Soaphead não via problema em fazer algo a respeito mesmo sem a tutela do animal.

Por isso, para não precisar mais se deparar com o animal envelhecido, o que materializava aquela velhice, e que transitava pelo mesmo espaço onde Soaphead vivia, ele decide arquitetar a morte de Bob.

Soaphead quer o alívio da inexistência de Bob não para Bob, mas para ele. O interesse de Bob pela própria vida não importa. Não interessa a ele saber se Bob ainda tem prazer em viver.

Isso ecoa a realidade ordinária de matar animais que são vistos tanto como “incômodos aos olhos” como animais que não são mais vistos como “úteis vivos” – como ocorre também com tantos animais de quem já não se pode obter, por exemplo, lucro.

Ainda que arbitrário, não é incomum alguém dizer que um animal deve morrer com base na idade, principalmente se esse animal antes havia sido instrumentalizado. Podemos pensar na realidade comum de vacas e galinhas descartadas e enviadas para o abate – e dos jumentos hoje no Brasil que, com o abandono e o avançar da idade, também são abatidos.

No livro “Ratos e Homens”, John Steinbeck traz um exemplo semelhante ao de Bob, a partir de um cão pastor que é assassinado somente por envelhecer, por não ser mais útil – é morto pela impossibilidade do que foi.

Quem diria que um humano deve morrer com base na idade? Quem diria que um humano deve morrer porque é incômodo olhar para ele? Soaphead acha que tem o direito de fazer isso porque Bob não é humano – a mesma lógica se estende a muitos animais o tempo todo.

Até mesmo a hipocrisia de Soaphead em “enobrecer” seu desejo pela morte do animal, que não é sobre Bob, mas sobre ele, reflete tentativas de argumentação tão comuns à morte de tantos animais.

Como Morrison lembra-nos, Bob tinha se adaptado àquela realidade – e ele seria livrado violentamente dessa adaptação por um desejo humano colocado acima de um interesse não humano – já que em nenhum momento da história é afirmado que Bob expressava que viver era um anseio por não viver.

A descrição escolhida por Morrison para a cena da morte de Bob é chocante porque gera um embate com a afirmação de “acabar com o sofrimento do animal”, já que é perturbadora e repleta de sofrimento – portanto a linguagem contrasta com o tom supostamente “moral” que Soaphead tenta atribuir ao ato.

A morte de Bob por envenenamento não é tranquila, não é pacífica – é violenta, agonizante e tão desconfortável que sozinha refuta a falsa “misericórdia” e a dissimulada “compaixão” de Soaphead, que são inevitavelmente esquecidas pelo sentimento que gera em quem lê.

Qualquer afirmação de “livrar o animal do sofrimento” é confrontada pelas terríveis dores do animal que experimenta a crueldade de ser morto por um interesse alheio ao seu.

A dissimulação moralista de Soaphead na hora de matar Bob evoca também como a religião e a “linguagem da piedade” podem ser instrumentalizadas para mascarar atos de dominação e violência.

Sobre “enobrecer” a morte de um animal

A hipocrisia de “enobrecer” a morte de um animal com discursos de “misericórdia” ou “fim do sofrimento” é uma retórica comum quando humanos decidem sobre o destino de animais não humanos. Muitas vezes, essa justificativa esconde o desejo de remover um incômodo visual, emocional ou econômico — como no caso de animais idosos em abrigos, animais usados nas relações de consumo, tração animal ou até mesmo espécies consideradas “pragas”.

Se fosse realmente sobre aliviar o sofrimento, a passagem de “O Olho Mais Azul” seria diferente — mas Morrison faz com que encaremos a realidade: isso é um assassinato disfarçado de “piedade”.

Leia também:

Quantos animais são mortos porque não são mais considerados úteis?

Animais atacam humanos ou se defendem de humanos?

Para não ser morto, um animal deve ser útil?

Um romance para refletir sobre a violência por trás da carne

Experiência de sofrimento faz homem se recusar a matar animais

Um animal deve ser bom para nós para que não o matemos?

Episódio de “Black Mirror” traz mensagem poderosa contra o domínio sobre os animais

“Acabe com eles”, um drama para refletir sobre a crueldade da exploração animal

Você comeria a cabeça de um cordeiro?

Para Nietzsche, a Igreja colocou os animais abaixo de nós

Jornalista (MTB: 10612/PR), mestre em Estudos Culturais (UFMS) com pesquisa com foco em veganismo e fundador da Vegazeta.

Uma resposta

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Faça uma doação à Vegazeta.
Sua contribuição é importante para o nosso trabalho.