No livro “Humano, demasiado humano”, do filósofo alemão Friedrich Nietzsche, publicado em 1878 e que no Brasil normalmente é encontrado em dois volumes, ele compartilha alguns aforismos sobre a sua percepção dos animais e da nossa relação com eles. Mas é válido lembrar que suas observações variam de um período a outro, chegando também a ser conflitantes.
Para Nietzsche, pode-se presumir que tanto o interesse humano pelo prazer quanto seu instinto social foram herdados de outros animais (2005, p. 76). Ele usa como exemplo a mãe que brinca com seus filhotes. Essa relação também havia sido considerada no século 16 por Montaigne na análise do sentimento dos animais, como o amor, e que, segundo ele, é um ponto a ser levado em consideração quando pensamos nos interesses dos animais.
Também é o interesse não humano pelo prazer, que será usado por diversos pensadores na oposição à exploração e matança de animais, que Nietzsche diz que a partir de suas manifestações chega-se a uma outra relação com a empatia. “[…] o mesmo fazem os sofrimentos comuns.”
Em Nietzsche, a observação sobre o prazer e o instinto social permite uma relação com o que é pontuado por ele mais adiante, em “Não julgueis”, quando ele conclui que se é possível reconhecer em outros animais o que compartilhamos com eles, como o prazer e o instinto social, isso não evita a crueldade contra eles.
“A crueldade com os animais […] tem origem na incompreensão; devido aos interesses doutrinários da Igreja, os animais foram colocados bem abaixo dos homens” (2005, p. 79). Quando Nietzsche refere-se à incompreensão, ele evoca a não racionalização da crueldade. Lembremos também que o papel da moral judaico-cristã ocidental na perpetuação do uso de animais é conhecido e insere-se também com frequência nas discussões relacionadas a uma apropriação da filosofia pelo cristianismo, e de uma forma que não favorece os animais não humanos, muito pelo contrário.
Ademais, hoje sequer o prazer e o instinto social são comumente pensados como herdados de outros animais, e quando o são, é mais comum não escapar a uma abstração. Afinal, se eles nos precedem em relação a interesses que tanto prezamos em relação a nós mesmos, há base justificável para a relação arbitrária que estabelecemos com eles?
Nietzsche também nos ajuda a pensar a relação humana-não humana quando aponta que muitas coisas terríveis e “desumanas” são “amenizadas” pela consideração de que o sujeito que ordena e o que é executado são diferentes. Não é essa também a base das violências que têm o especismo como razão? Ele também reconhece que, com exceção de alguns filósofos, embora isso esteja mudando mais na atualidade, os homens sempre situaram a compaixão num nível baixo na hierarquia dos sentimentos morais – como se não fosse algo a ser considerado moralmente ou fosse até mesmo antitética.
Sobre isso, podemos trazer também para a reflexão o que o filósofo John N. Gray aponta em “Cachorros de Palha”, quando, na contramão desse filosófico centrismo humano, e excludente por opção, coloca em xeque a compreensão da moralidade como conjunto de leis ou princípios e apresenta uma percepção da moralidade como um sentimento – “de compaixão pelo sofrimento” (2005, p. 60) . Esse apontamento já surge estabelecendo um conflito com o baixo valor moral atribuído à compaixão, pensada também a partir da sua inerente relação com a empatia.
No que diz respeito à crueldade, Nietzsche também rejeita a crença de que toda criança que é cruel com os animais o é por intenção, por compreensão de que ao causar mal a um animal o causa como resultado de um desejo. “Quando não sabemos o mal que faz uma ação, ela não é uma ação maldosa; a criança não é maligna nem perversa com os animais: ela os investiga e os destrói como um brinquedo. Mas alguma vez se sabe inteiramente quanto mal faz uma ação a um outro ser?”
Nietzsche não nega que possa haver crueldade na ação de uma criança, mas ele nega que se possa generalizar toda crueldade como resultado de uma intenção em ser cruel. O mesmo permite-nos pensar sobre todas as ações contra os animais que são normalizadas e que, embora cruéis, não são reconhecidas como se fossem. Afinal, quando as práticas são institucionalizadas e aceitas pela maioria, até mesmo o sentido de cruel é preterido como se não fosse uma realidade – assim havendo uma contradição em si. Ademais, não sendo o homem cruel, isso não significa que sua ação não seja cruel.
Humano, demasiado humano II
Em “Humano, demasiado humano II”, Nietzsche aponta que é possível observar a gênese da moral em nosso comportamento com os animais. ”Quando não entram em consideração a utilidade e o dano, temos um sentimento de total irresponsabilidade […]” (2008, p. 167).
Ele também usa como exemplo em “O trato com os animais” que há animais que matamos e ferimos e geralmente nada pensamos ao fazê-lo. Isso ocorre porque estão fora dos nossos limites de consideração. Nietzsche estende isso a insetos e como matá-los é como não matá-los.
“[…] nós esmagamos, sem querer, mas também sem dar atenção, ora um pequeno verme, ora um besourinho alado, aqui ou ali. — Se os bichos nos causam dano, empenhamo-nos no seu extermínio; os meios para isso são frequentemente cruéis sem o querermos: é a crueldade da irreflexão. Se nos são úteis, então os exploramos: até que uma prudência mais refinada nos ensina que alguns animais recompensam bastante um outro tipo de tratamento, ou seja, a criação e o disciplinamento. Apenas então surge a responsabilidade” (p. 167).
No apontamento da crueldade, Nietzsche retoma observação análoga a do primeiro volume, mas podemos ainda estabelecer uma relação entre crueldade e exploração, porque a utilidade afasta a compreensão e o reconhecimento da crueldade.
É perceptível também que quando Nietzsche diz que a responsabilidade só surge quando estabelecemos um outro tipo de relação com os animais, ele nos permite inferir isso como ausência quando a relação é baseada na exploração – um ponto que também converge com o que tem sido apontado por pensadores que apontam o mal da subjugação dos animais.
Também nesse segundo volume de “Humano, demasiado humano”, ele classifica como uma “moral primitiva” quando uma vaca é maltratada e a preocupação não é com o animal, mas com a “utilidade comum em perigo”. Esse apontamento de Nietzsche também pode ser pensado como uma crítica à defesa da consideração dos animais por deveres indiretos, que surge quando o mal a um animal é visto como um “dano à propriedade”, e que esse mal deve ser observado como um mal ao proprietário e não ao próprio animal que experimenta esse mal.
O que Nietzsche coloca também serve à crítica comumente feita ao tratamento dado aos animais criados para fins de consumo mesmo hoje, já que muito do que é visto como um benefício para os animais é na realidade uma consideração em relação ao que será tirado deles. Conforme Nietzsche, nós tememos pela qualidade da carne, não pelo animal, quando não vemos os animais serem bem tratados (p. 167).
O filósofo alemão também referencia, a partir de uma comum observação, a suspeita de que ser ruim com os animais leva a uma preocupação em ser ruim com as pessoas. Ele não traz isso como uma conclusão própria e sim como uma conclusão observada. Mas e quando ser ruim com os animais não é visto como sê-lo? Se vêm das perpetuações de interesses humanos normalizados, mas que não deixam de ser danosos aos animais.
Nietzsche diz que o cristianismo demonstrou ser uma religião pobre e retrógada em comparação com outras religiões e crenças que se voltam a uma outra perspectiva sobre os animais. O cristianismo também reivindicou a exclusão de outros animais como criaturas com alma, reconhecendo-a somente na excepcionalidade do que é ser humano.
Ele observa que mesmo na superação do que pode ser considerado supersticioso, como a crença dos animais não humanos como morada das almas dos homens e deuses, ou na metempsicose (transmigração de almas – a crença de se renascer como outro animal) que também é abordada por Pitágoras, Montaigne, Voltaire e Schopenhauer, os sentimentos ocasionados por essas crenças amadurecem e florescem, diferentemente do que ocorre com o cristianismo. Essa questão do amadurecimento pode ser percebida pelos limites que não são impostos pela razão ocidental nem pelo antropocentrismo.
Na abordagem da relação entre vaidade e utilidade, Nietzsche diz que o homem explora ao máximo a natureza e, alternando carência e abundância, segue matando mais animais do que pode consumir (2008, p. 209). Ele relaciona os excessos do homem à presunção em ser tido por mais poderoso do que é.
Referências
NIETZSCHE, F.W. Humano, demasiado humano. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. 320 p.
NIETZSCHE, F.W. Humano, demasiado humano II. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 312 p.
GRAY, J.N. Cachorros de Palha. 8. ed. Rio de Janeiro: Record, 2005. 256 p.
Leia também “Quando Nietzsche reagiu à violência contra um cavalo“, “Para Montaigne, é uma presunção crer que somos superiores aos outros animais” e “Animais não são nossos escravos“.