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Um animal deve ser bom para nós para que não o matemos?

Uma reflexão a partir do livro “O sol é para todos”, de Harper Lee

Quando li o romance “O sol é para todos”, de Harper Lee, o que também me chamou a atenção foi a observação de Atticus Finch, feita à filha Scout, de que ninguém deve matar um tordo-imitador porque é um animal inocente, inofensivo, que apenas canta – sendo seu canto uma coisa boa.

No discurso, que depois é endossado pela vizinha Maudie, é dito também que o tordo-imitador é bom porque não faz ninhos em locais inadequados, como nos milharais ou onde armazenam o milho. Também não invade jardins e pomares. É como dizer que ele é bom porque não interfere no que é chamado de espaço humano. Mas onde vivemos não é também espaço não humano?

Ou devemos crer que todo o espaço que habitamos deve ser percebido como inerentemente nosso e de nenhum outro tipo de animal? Mesmo quando a sobrevivência de outros animais também depende da interação com esse ambiente que, embora modificado, precede nossa existência.

O título em inglês, “To kill a mockingbird” traz uma referência a mockingbird, o tordo-imitador, como Tom Robinson; um homem negro que é preso, falsamente acusado de estupro. Após a condenação (em que o racismo prevalece), em um momento de desespero e já não acreditando em justiça, ele tenta fugir, mas é morto a tiros pelos guardas da prisão. A conclusão é de que Robinson já imaginava que seria assassinado ao fazer isso.

Na analogia do livro, Tom Robinson é inocente como um tordo-imitador que não causa nenhum mal. Portanto Robinson, que era um sujeito pacífico e solícito, não poderia ser punido assim como o tordo-imitador também não deve ser. Harper Lee estabelece essa relação entre o humano e o não humano no que diz respeito à alusão da inocência e do ser inofensivo.

Se naquele contexto cristão havia também a crença de que matar o tordo-imitador era pecado, matar Robinson também era. Há uma relação estabelecida entre um e outro, sobre o que envolve também a imposição de privação e de morte. Mas o que pode ser problematizado também é a questão subjetiva do que é causar um mal quando a ação que parte da perspectiva humana ignora a perspectiva não humana.

Se partimos da percepção de Finch de que não se deve fazer mal a um animal percebido como inocente ou inofensivo, os animais que não agem como o tordo são ruins e devem ser punidos? Como determinar como mal a ação de um animal que tenta sobreviver? Há um mal, por exemplo, em reagir à fome, em buscar abrigo? Ademais, a própria definição de inocência pode ser colocada em discussão quando surge para ser excludente em relação a outros animais com base no interesse humano.

Os apontamentos críticos de Atticus Finch colocam o tordo-imitador em vantagem na consideração humana em relação a outros animais. Há um momento em que ele diz que, ao contrário do tordo-imitador, o gaio, considerado um animal barulhento, não merece consideração. Percebemos isso quando Finch afirma que ná há problema em atirar em quantos gaios quiser. Mas o interesse do gaio pela vida é menor do que o do tordo-imitador? Ele também não inclui o gaio na consideração sobre ser pecado matá-lo, ainda que seja uma ave que também não anseia por ser assassinada.

Os apontamentos feitos por Finch, que na história é um bom homem que tenta garantir a liberdade de Tom Robinson em um meio racista, leva a pensar que podemos simplesmente dividir os animais entre bons e ruins, atribuindo um juízo de valor que é invenção humana; sendo bons aqueles que não nos prejudicam e nos beneficiam; e ruins aqueles que não nos favorecem ou por quem temos alguma antipatia.

Por que o nosso viver deve ser a medida das coisas se compartilhamos o mundo com tantas outras espécies? Muito do que é definido como males na relação de outros animais com os humanos parte de uma consideração em que devemos avaliar as ações dos animais com base em como isso se relaciona com o nosso viver; e bem pouco sobre como as nossas ações se relacionam com o viver desses animais.

Um animal deve ser bom para nós para que não o matemos? Essa foi uma pergunta que me veio à mente a partir das observações de Finch. Se acreditamos que sim e insistimos nisso, então nosso olhar sobre esses animais, mesmo quando não são explorados por nós, é arbitrário e convenientemente especista.

É comum julgar como adequado esse olhar em relação aos outros animais, mas e se, sobre o uso de espaços, os outros animais tivessem o mesmo olhar sobre nós e agissem da forma como agimos em relação a eles? Esse é um bom exercício de empatia.

Leia também “Para não ser morto, um animal deve ser útil?“, “Quantos animais são mortos porque não são mais considerados úteis?” e  “Por que usamos o termo ‘humano’ como bom e ‘animal’ como mau?

Jornalista (MTB: 10612/PR) e mestre em Estudos Culturais (UFMS).

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