“Christspiracy” é um documentário de Kip Andersen (conhecido por “Cowspiracy” e ‘What the health”) e Kameron Waters que refuta a afirmação de que Jesus era favorável ao consumo de animais. A conclusão é baseada no que é apresentado por teólogos, pesquisadores do cristianismo e tradutores do hebraico bíblico.
Segundo o filme, houve uma distorção de alguns ensinamentos de Jesus, inclusive de traduções bíblicas, assim como ocultamento de informações, para que coubessem na lógica da exploração, matança e consumo de animais.
Kip e Kameron viajam por várias partes do mundo em busca de respostas que expliquem também o motivo pelo qual tantos religiosos ainda consomem carne, mesmo quando defendem a importância da compaixão.
Eles também colocam em discussão se é possível ser espiritual e consumir carne. Para isso, trazem pesquisadores da história de outras religiões que concluem que a crença ainda tão comum hoje de que é possível ser espiritual e participar da matança e consumo de animais é equivocada e contraditória.
Para questionar a posição de Jesus sobre o consumo e a matança de animais, eles usam o exemplo da expulsão dos vendilhões do Templo de Jerusalém, que transformaram o local em espaço de comércio – com a venda de animais para sacrifício.
Esses animais também tinham suas carnes vendidas para consumo pelos próprios sacerdotes. Por esse motivo, o teólogo e sacerdote anglicano Andrew Linzey explica que o templo foi transformado em “um grande matadouro”, algo que Jesus abominou – o que também é endossado no filme por outros pesquisadores.
O documentário mostra como esse fato foi explorado posteriormente ignorando que Jesus também era contra a matança de animais, e que ele não agiu apenas porque estavam usando o templo para a obtenção de lucro. Ele percebeu que também o estavam usando para legitimar a crueldade contra os animais.
O reitor da Universidade do Vaticano, em Roma, é questionado se Jesus teria ou não comido e matado animais. Ele decide interromper a entrevista sem dar uma resposta, embora admita antes que não há como imaginar Jesus segurando uma faca e matando um cordeiro.
Segundo o pesquisador e jornalista Jim Mason, autor do livro “An unnatural order”, o sacrifício de animais foi conveniente para legitimar religiosamente o consumo de animais, porque facilitou a aceitação desse consumo quando os animais passaram a ser mortos em um contexto religioso – diminuindo ou até mesmo anulando o sentimento de culpa.
“O sacrifício de animais se torna um meio de fornecer carne para as cidades em um contexto religioso, ao transformar um ser que seria sagrado em um que pode ser comido. E isso evoluiu para um sistema em que Deus diz: ‘Sim, vocês têm permissão pra isso. Vocês têm domínio sobre a terra.’ Domínio é o princípio que guia todas as visões das religiões ocidentais sobre os animais – o que levou também a muitas formas espirituais de matar animais para o mercado, como kosher e halal.”
A questão do domínio é colocada em discussão porque a palavra original teria recebido um sentido diferente do que lhe foi atribuído. Linzey, o teólogo que estudou a palavra, explica que o seu uso original não diz respeito a “dominar”, mas a um sentido de cuidado, de um “agir com os outros como Deus age conosco ou como os pais fazem com os filhos”.
Deborah Rooke, tradutora do hebraico bíblico e professora de teologia da Universidade de Oxford, também pontua que a palavra original utilizada por Jesus para se referir aos vendilhões do templo também significa assassino. Porém esse sentido foi ocultado das traduções, assim desfavorecendo uma observação comum sobre a reação de Jesus à matança de animais no templo – até porque o sentido de assassinato em si já traz uma reprovação do que é feito com os animais.
Parte desses problemas é atribuído mais tarde por autores, pesquisadores e teólogos entrevistados para o documentário como uma consequência dos rumos do cristianismo, que foi determinado por aqueles que apoiavam a matança e o consumo de animais.
O apóstolo Paulo teria sido determinante para que fossem excluídas das escrituras os ensinamentos e vivências de Jesus, João Batista, Tiago, Mateus e Pedro que referenciassem uma oposição à matança e consumo de animais.
Conforme Linzey: “O que sabemos sobre os vencedores é que Paulo era ferozmente antivegetariano e sua influência sem dúvida influenciou a direção do cristianismo, especialmente no primeiro século.”
Segundo o reverendo Rob Munro, da Igreja Humanitária: “São Paulo é um líder romano que espalhou o cristianismo para as massas, incentivou os convertidos a comer carne, condenando o movimento que não o fazia.”
Até mesmo a história da multiplicação dos pães e dos peixes é apontada como inconsistente, de acordo com o historiador Keith Akers, autor do livro “Lost religion of Jesus”, que aponta que nos relatos mais antigos não se falava em peixes, mas somente em pães. Além disso, afirma-se que houve um erro posterior em que uma palavra com outro sentido foi traduzida como peixe.
Munro também afirma que a igreja ampliou os escritos pró-carne de Paulo enquanto queimava os livros que não se alinhavam com sua nova doutrina. “Sabemos que o evangelho dos ebionitas que retrata Jesus como vegetariano foi suprimido pela igreja”, observa Linzey.
O arqueólogo Robert Eisenman, que também é professor de religiões do Oriente Médio na Universidade Estadual da Califórnia, afirma que o nome “Jesus de Nazaré”, que não faz menção a um lugar e sim ao grupo ao qual Jesus integrava, já trazia em si uma oposição ao que era feito com os animais.
“Os nazarenos se opunham ao que acontecia no templo onde animais eram sacrificados e havia todo aquele comércio.” Segundo Einseman, matar não era parte da vida de “nenhum desses justos”, portanto eles não matavam nem comiam animais, diferenciando-se de outros movimentos da época ao seguir o mandamento “não matarás” de forma não seletiva, incluindo também os animais.
O historiador dr. Charles Vaclavik, autor do livro “The origin of christianity”, afirma que todo o movimento nazareno do século IV ainda era vegetariano, e cita como exemplo quando Epifânio de Salamina questionou um dos nazarenos sobre o motivo pelo qual eles não se alimentavam de animais: “Por que Jesus nos ensinou a ser vegetarianos.”
Ele também sustenta que para entender de onde Jesus veio é preciso voltar aos ensinamentos de Pitágoras – o vegetarianismo, pacifismo e comunalismo incorporados na doutrina essênia e na doutrina nazarena em que Jesus cresceu.
Akers avalia que se Jesus vivesse hoje e fizesse o que fez no Templo de Jerusalém, ele seria considerado um terrorista. “O que Jesus fez foi também um ato de libertação animal.”
Além de se pautar na contradição cristã de tomar parte na violência contra os animais, o que é mais usual para a maioria por meio do consumo, Kip Andersen e Kameron Waters trazem também autoridades e pesquisadores de outras religiões problematizando a defesa do consumo de animais no contexto dessas religiões.
Em síntese, a defesa de que está tudo bem em tomar parte na exploração e morte de animais para fins de consumo entra em conflito com a própria razão de ser dessas religiões quando tratam da empatia, compaixão e do respeito à vida. O próprio sentido de espiritualidade é apontado como estranho ao entendimento de que não há problema em causar mal desnecessário aos outros.
O guru Acharya Prashant observa que a espiritualidade é mover-se da incompletude para a completude, algo que não é possível se nos alimentamos de animais. Portanto é contraditório ser espiritual mantendo uma constante relação com a morte por meio do consumo.
Cerimônias espirituais também não fazem sentido se não nos desvencilhamos desse consumo, segundo o xamã Wilson Robles, que vê o veganismo não como uma filosofia nem doutrina, mas como um estado de consciência.
Clique aqui para assistir ao documentário gratuitamente e legendado.
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Uma resposta
A reação da tradutora e pesquisadora no momento em que ela se dá conta de que a palavra original em hebraico se traduzia por “assassinos” foi um dos pontos mais marcantes do filme. Aquela relação entre a vesica piscis de Pitágoras e o símbolo cristão do peixe também é muito interessante, sendo Pitágoras um célebre vegetariano, é como um quebra-cabeça sendo montado.