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Animais não são nossos escravos

Uma reflexão a partir do livro “O sol poente”, de Osamu Dazai  

No segundo capítulo do romance “O sol poente”, de Osamu Dazai, publicado no Japão em 1947, Kazuko, enquanto conversa com a mãe, reflete que não vê nada no homem que o permita afirmar-se como senhor de toda a criação, como se outros animais existissem para servi-lo. Observação semelhante é encontrada em “A insustentável leveza do ser”, de 1982, de Milan Kundera.

Além de Kazuko refutar o antropocentrismo, como o cristianismo é por vezes referenciado não somente nessa obra de Dazai, mas também em outras dele, como “Declínio de um homem” e “Mulheres”, a observação de Kazuko surge confrontando também a crença ainda comum, e baseada em uma conveniente (e hoje mais do que nunca discutível) interpretação da Bíblia, de que é um direito humano exercer domínio sobre outros animais.

Se pensarmos nas consequências dessa conveniente crença, que teria lugar não somente no Ocidente nem somente com o cristianismo, mais fácil ainda é concordar com as palavras de Kazuko hoje; e conforme não apenas as interpretações ganham mais pluralidade, mas também um chamamento para a atenção às diferenças não mais como inferioridades, como ocorreu no passado visando legitimar um ilimitado exercício de domínio sobre os animais.

“O homem tem, eu sei, linguagem, conhecimento, princípios e ordem social, mas não é verdade que todos os outros animais têm isso também, em graus diferentes?”, continua Kazuko (2022, p. 37).

A observação feita por ela é algo que ainda hoje é pouco levado em conta em relação a animais explorados, seja para consumo ou outro fim, havendo uma preferência por manter-se numa zona de conforto que é também uma zona de conveniente desconhecimento.

E se concordamos com ela, mas não deixamos de concordar com a exploração, precisamos admitir que a verdade é que não nos importamos com as características elencadas por Kazuko, porque rejeitamos quem as têm e meramente porque não são humanos; uma percepção que é influenciada pelo que queremos desses animais e apoiamos em relação a eles, mesmo que sejam expressões terríveis de arbitrariedades.

Não saímos de uma zona paradoxal de estranheza se não vemos problema em fazer o mal a seres que compartilham características análogas às nossas. Claro que nossa consideração por outros animais não precisa ser baseada essencialmente no que Kazuko observa, se retomarmos até mesmo as observações mais simplistas, como as que envolvem o sofrimento e a morte como meios e fins; porém serve também para ratificar a distância estabelecida em relação a outros animais.

Uma vida toda participando da exploração deles, e que ocorre com a aceitação da maioria, é estabelecer uma estranha e mortal relação com desconhecidos, anônimos, sujeitos que não queremos conhecer e sobre os quais os interesses mais básicos que estão em oposição à exploração são ignorados, como se sequer existissem.

De qualquer forma, se reformularmos a observação de Kazuko, levantando a questão: “O que vocês acham de explorar e matar alguém que tem linguagem, princípios e ordem social?”, é improvável que a maioria ou mesmo uma única pessoa concorde com isso – pelo menos quando não há uma identificação se estamos falando de um humano ou de outro animal.

Isso é óbvio porque jamais diríamos que quem tem linguagem, conhecimento, princípios e ordem social deseja ser explorado ou deseja ter sua vida como um fim que seja um mal para si mesmo em discutível benefício para outros. Todas as características citadas por Kazuko em sua observação apontam para o óbvio da complexidade que constitui também os animais não humanos.

Kazuko diz o que diz sem também estabelecer um condicionante, porque ela não afirma que são essas capacidades que devemos levar em conta em relação a outros animais, mas tendo-as, podemos concluir que isso não deixa de fortalecer o antagonismo em relação ao que é feito deles.

O que Kazuko vê de diferente dos humanos em relação a outros animais não é uma qualidade. Como ela própria diz, não é algo de que “possam se gabar” por serem humanos. Afinal, se nisso há a perpetuação do mal para os outros, como interpretar isso como positivo?  Ela até questiona, como parte da ponderação sobre a complexidades dos seres, se os humanos são os únicos capazes de terem uma religião, sugerindo que outros animais também podem tê-la.

E se tivessem, como ignorar o que nos diz o professor da Universidade de Cambridge e sacerdote anglicano William Ralph Inge em “Outspoken Essays”, quando observa que temos escravizado tantos animais e os tratado tão mal que, sem dúvida, se eles formassem uma religião, eles descreveriam o diabo em forma humana.

Parece também que, Dazai, que tem uma literatura que quando não autobiográfica traz pelo menos alguns elementos autobiográficos, apresenta Kazuko como alguém que também expressa seus questionamentos sobre o papel do ser humano no mundo e sua relação com a vida, tendo ele próprio vivido constantemente em crise. E, em meio às observações de Kazuko, a mãe sorri positivamente.

Referência

DAZAI, O. O sol poente. 1. ed. São Paulo: s.n., 2022. 173 p.

Leia também “Princesa Mononoke, um filme para refletir sobre o respeito pelos animais e pela natureza“, “Hitler e Stálin perseguiram vegetarianos” e “A vida dos animais é feita de miséria e escravidão

Jornalista (MTB: 10612/PR) e mestre em Estudos Culturais (UFMS).

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