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Como a pecuária brasileira gera grandes problemas ambientais

Vivemos em um cenário de clássica apatia e indiferença em relação aos custos ambientais da produção de carne (Foto: Greenpeace)

Quantos consumidores conhecem a história da carne antes de chegar ao prato? Não é preciso nenhuma pesquisa para concluirmos que poucos, já que a realidade nos dá mostras o tempo todo do quanto estamos alheios às implicações das nossas relações de consumo.

Um desses exemplos é a clássica apatia e indiferença envolvendo os custos ambientais da produção de carne. Claro que o Brasil tem uma realidade diferente de países como Estados Unidos, Canadá, Austrália e muitos outros que, por diversos fatores, incluindo disponibilidade de áreas agricultáveis, têm sua produção de carne fundamentada essencialmente na criação de animais nas chamadas “factory farms”, que no Brasil às vezes são referenciadas como “fazendas industriais”.

Esse sistema equivale aqui ao que chamamos há muito tempo de “pecuária intensiva” (Foto: Scott Bauer/USDA)

Pecuária intensiva e “factory farms”

Esse sistema equivale aqui ao que chamamos há muito tempo de “pecuária intensiva”, em que o uso de técnicas e tecnologias permite a criação de um grande volume de animais em um espaço reduzido, ainda que isso desperte discussão ética por fatores óbvios – já que os níveis de privação animal são ampliados ainda mais.

Nos EUA, por exemplo, 70,4% do “gado de corte” é criado nesse sistema, assim como 98,3% dos porcos, 98,2% das galinhas poedeiras e 99,9% dos frangos, segundo relatório concluído em 2019 pelo Sentience Institute.

Embora tenha aumentado o número de políticos, organizações e pessoas influentes tentando combater esse sistema de pecuária intensiva, as “factory farms” continuam predominando nos países mais desenvolvidos e industrializados e, não parece haver, de fato, um cenário auspicioso para esse fim em prazo tão curto.

Prova disso estão em documentários e pesquisas que apontam que inúmeros países não têm áreas para gerarem o volume atual de produtos de origem animal em outro sistema de produção. Então a melhor solução seria migrar para outro tipo de atividade.

Talvez uma recente exceção seja a Suíça (com extensão territorial de apenas pouco mais de 41 mil quilômetros quadrados), onde a discussão está mais adiantada e há um projeto com mais de 100 mil assinaturas visando o fim das “fazendas industriais” no país.

A pecuária predominante aqui é a extensiva, com estimativa de que até 90% do “rebanho bovino de corte”, que será abatido para consumo, é criado nesse sistema (Foto: iStock)

Pecuária extensiva e gado no pasto 

No Brasil, por enquanto, não há uma forte cultura de pecuária intensiva de bovinos ou do que poderíamos chamar de um modelo de “factory farms”. A pecuária predominante no país é a extensiva, com estimativa de que até 90% do rebanho que será abatido para consumo é criado nesse sistema, ou seja, no pasto, segundo informações da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).

“Mas que tipo de problema existe nisso? Não é uma boa coisa, o animal solto se alimentando de plantas forrageiras? A única parte que pode parecer negativa desse processo para alguns é que esse animal, assim como os outros criados em confinamento, será abatido da mesma forma”, alguém pode alegar.

O problema da pecuária extensiva, além de desconsiderar um imperativo ético sob a perspectiva dos direitos animais, são suas implicações ambientais. Afinal, animais criados no pasto demandam grandes áreas, ponderando que o Brasil tem uma criação comercial de 213,5 milhões de bovinos, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Agora imagine 93% desses animais ocupando pastagens em um país onde cada boi utiliza, em média, 1,2 hectare, conforme dados da Embrapa. Isso significa, 256,2 milhões de hectares do território brasileiro destinados somente à criação de bovinos para consumo, onde florestas de diferentes biomas foram derrubadas.

2,562 milhões de quilômetros quadrados dedicado a um único produto – carne bovina (Acervo: Giro Rural)

30% do território brasileiro usado pela pecuária 

Convertendo áreas de pastagens em quilômetros quadrados, chegamos ao total de 2,562 milhões, que ultrapassa 30% da extensão territorial do Brasil, que é de 8,511 milhões de quilômetros quadrados. Tudo isso dedicado a um único produto – a carne bovina.

Um boi ocupando um hectare no Brasil é abatido com peso variável de 18 a 21 arrobas, o que equivale a 270 a 315 quilos. Por outro lado, os sistemas agroflorestais chegam a proporcionar até 80 mil quilos de vegetais nessa mesma área, além de favorecer a fertilidade do solo que não é preservada pela pecuária. Mesmo em um sistema convencional de rotação de culturas é possível produzir pelo menos 15 mil quilos de vegetais ao ano.

Outro ponto de reflexão é que mesmo com a maior parte do gado brasileiro sendo criado no pasto, isso também não significa que sua alimentação seja baseada somente em plantas forrageiras, embora esta seja a preferência.

A razão é que as plantas precisam ter um perfil nutricionalmente completo para que esses herbívoros ruminantes demandem o mínimo de ração ou suplementação, e isso só é possível em áreas onde o solo tem elevado nível de excelência.

Ainda assim, se houver longos períodos de estiagem, os animais demandarão grande aporte de ração e suplementação, até porque a fertilidade do solo depende dos ciclos de chuvas, que têm se tornado cada vez menos frequentes e mais irregulares no Brasil.

Mesmo com esses contras, a agropecuária continua dominando cada vez mais as terras brasileiras (Foto: Getty)

Aumento de grandes áreas degradadas

Mesmo com esses contras, a agropecuária continua dominando cada vez mais as terras brasileiras. No cerrado, por exemplo, como denunciado pela organização WWF-Brasil, mais da metade da área original do bioma foi convertida principalmente em atividades agropecuárias, e pesquisas apontam que infelizmente apenas 20% do que resta de vegetação encontra-se em condições saudáveis de conservação.

Em 2017, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontou que o Brasil já contava com mais de 350 milhões de hectares ocupados pela agropecuária – mais de 40% do território brasileiro.

A pesquisadora da Embrapa, Sandra Furlan Nogueira, informou que à época 172 milhões dos mais de 200 milhões destinados às pastagens já sofriam as consequências da degradação associada ao mau uso da terra. Isso pode explicar o interesse cada vez mais crescente de agropecuaristas de várias regiões do Brasil pelas terras ainda virgens da Amazônia.

No entanto, esse interesse não é recente considerando que a floresta amazônica se manteve intacta só até a década de 1970, quando a quantidade de gado equivalia a um décimo do rebanho da atualidade, como observado pelo documentário “Sob a Pata do Boi”, de Márcio Isensee e Sá, de 2018.

Com o passar dos anos e a intensificação do desflorestamento, hoje encontramos uma área que pode ser comparada à extensão territorial da França desmatada. Desse total, 66% transformada em pasto – denuncia o filme.

Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) informa que 80% do desmatamento foi provocado pela agropecuária (Foto: Greenpeace)

Contribuição ao desmatamento da Amazônia

A realidade do desmatamento da Amazônia também foi recentemente denunciada pela BBC no documentário “Meat: A Threat to Our Planet?” ou “Carne: Uma Ameaça ao Nosso Planeta?”. “Agora estamos perdendo dois campos de futebol por minuto e devastando a vida selvagem da região”, enfatiza o filme que levanta reflexões sobre nossas responsabilidades enquanto consumidores.

Segundo o Greenpeace, a pecuária na Amazônia brasileira é responsável pela destruição de um em cada oito hectares. A Fundação Joaquim Nabuco já publicou que a atividade responde por 65% do desmatamento da Amazônia. Já a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) defende que 80% do desmatamento foi provocado pela conversão de terras em pastos e produção de grãos destinados à alimentação de animais criados para consumo.

Em 2018, os pesquisadores Thomas Lovejoy, da George Mason University, dos Estados Unidos, e o coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Mudanças Climáticas, Carlos Nobre, publicaram na revista Science o artigo “Amazon Tipping Point”.

No estudo, eles enfatizam que além do desmatamento que já havia chegado a um milhão de quilômetros quadrados, outro fator que tem impactado muito no ciclo hidrológico amazônico é o uso indiscriminado do fogo por agropecuaristas durante períodos secos, visando a formação de lavouras e pastagens.

Não é novidade que a maior floresta tropical do mundo tem sofrido as consequências da agropecuária, e não apenas pela associação da atividade com o desmatamento e destruição de habitat de fauna, assim aproximando espécies de animais da extinção, mas também porque muitas áreas amazônicas ocupadas pela agropecuária já estão comprometidas pelo mau uso da terra – assim como aconteceu em outras regiões do país.

Segundo a Embrapa, só na Amazônia Legal cerca de 40% das pastagens estão degradadas ou em processo de degradação. Isso permite ponderar que a agropecuária não tem apenas derrubado a mata nativa e assim contribuído com as emissões de gases do efeito estufa no Brasil, conforme dados do Observatório do Clima, mas também danificado o solo, inclusive o tornando pobre e até mesmo improdutivo.

Metano é até 30 vezes mais potente do que o dióxido de carbono (Foto: iStock)

Metano, um problema maior do que parece

Outro problema mais específico e normalmente subestimado em relação ao impacto ambiental da atividade no Brasil é que cada bovino libera de 30 a 50 galões de metano por dia. Esse gás do efeito estufa, que também é liberado por suínos, ovinos e caprinos, foi apontado em 2017 pela Agência Espacial Americana (Nasa) em artigo publicado na revista científica Carbon Balance and Management (CBM) como até 30 vezes mais potente do que o dióxido de carbono.

Na conclusão, o estudo sugere que embora o metano gerado pelo gado não seja a fonte dominante de emissões globais, pode ser o principal contribuinte para os recentes aumentos nas emissões de metano no mundo todo. E ao favorecer as mudanças climáticas, pode contribuir com a intensificação das secas que empobrecem os pastos pela ausência de ciclos de chuvas nos períodos desejados. Sendo assim, a pecuária também pode ter se tornado o grande problema da pecuária.

Mas talvez seja o momento de questionar para onde vai toda a carne bovina “produzida” no Brasil. De acordo com a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), 80% é destinada ao consumo interno, o que significa que se temos alguém a culpar em relação aos grandes problemas ambientais gerados pela pecuária nacional são os consumidores brasileiros em primeiro lugar – já que não há oferta sem demanda.

Jornalista (MTB: 10612/PR) e mestre em Estudos Culturais (UFMS).

3 respostas

  1. Gostei muito do artigo, David!

    Embasado em fatos, ciência e em informações fornecidas até mesmo por grupos ligados à pecuária, o que reforça a objetividade do trabalho. Uma excelente introdução à questão ambiental da pecuária no Brasil.

    Gostaria de fazer duas pontuações sobre o texto.

    A primeira diz respeito às Bactérias Resistentes a Antibióticos – também conhecidas como “super bactérias -, que são produzidas pelo sistema de criação intensivo/industrial. O papel da indústria da carne no fortalecimento desses microorganismos é uma questão que me parece importante, mas geralmente ocultada – A “cowspiracy” para além da questão ambiental. Além disso, o sistema intensivo também promove o despejo dos dejetos (fezes, sangue, carcaças, etc) em rios, sendo esta uma outra forma na qual esse sistema prejudica o meio ambiente. O relatório Comendo o Planeta, da SVB, e o Atlas da Carne, publicado pela Heinrich Boll Foundation, abordam essas questões.

    O segundo ponto se refere à questão da principal culpa ser do consumidor, relegando o papel da ideologia e do Estado na manutenção da indústria da carne ao segundo plano. Sem querer negar o papel da vontade do consumidor nessa questão, acredito que os que consomem não podem ser considerados como alguém que compra por livre e espontânea vontade.

    Como demonstrou Karl Marx, existe uma ideologia que nos induz a agirmos conforme o interesse das classes dominantes. Melanie Joy, ativista e autora vegana, indica o Carnismo como a ideologia que orienta nossa relação com os animais. Para citar uns poucos exemplos, lembremos que desde criança vemos médicos dizendo que precisamos comer carne para sermos saudáveis; somos ensinados que este hábito aumenta nosso status social; vemos nas novelas, nos livros escolares, nos filmes, etc. o consumo de carne sendo retratado como natural… Ou seja, a escolha de consumir carne não é feita pelo indivíduo de forma totalmente livre, já que estes são induzidos a isso. De maneira análoga, a população não deixará de ter esse hábito sem que essa ideologia seja enfraquecida e superada.

    Ademais, no que diz respeito ao Estado, nos temos a carne sendo colocada como parte obrigatória do cardápio escolar, dos restaurantes populares. Temos políticas massivas para reduzir o custo da carne e aumentar a produção de soja – está última com destino à alimentação do gado. Sobre isso, não podemos esquecer também que o crescimento da JBS (gigantesca empresa brasileira ligada ao consumo de carne) ocorreu por conta de políticas criadas pelo governo petista e nem que o passe livre que Bolsonaro e Ricado Salles (Ministro do Meio ambiente) estão dando para os pecuaristas destruírem as florestas contribui com o aumento do consumo de carne.

    Em resumo, penso ser importante considerarmos o papel da ideologia e do Estado no incentivo ao consumo de carne, os quais ajudam a criar essa “necessidade” nos indivíduos e facilita a compra desse produto.

    No mais, espero que continue produzindo textos excelentes! ^^

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