Como o marketing prejudica o veganismo

Quando acreditamos que não há problema em não ser honesto na promoção do veganismo, traímos o princípio do veganismo que é baseado na ética

Foto: Aitor Garmendia

Há uma defesa hoje de que o marketing é um aliado na aproximação das pessoas do veganismo ou do que é relevante ao veganismo. Mas será que essa é a única leitura possível?

Se o marketing é usado de forma a promover meias-verdades ou informações parciais, que não condizem com um retrato amplo de uma realidade, ou dados que ocultam problemas que merecem mais atenção, então essa é uma forma equivocada de promover o veganismo.

Quando acreditamos que não há problema em não ser honesto na promoção do veganismo, traímos o princípio do veganismo que é baseado na ética. O veganismo e o que é relevante ao veganismo devem crescer com base na honestidade, no que é realmente verdadeiro.

Não precisamos de inverdades, de recortes que induzem a conclusões equivocadas. Além disso, se criamos uma ideia de que o veganismo está crescendo mais do que realmente está, isso também não ajuda o veganismo. E ainda pode levar muitos a um efeito estacionário, baseado na conclusão de que se há uma mudança em andamento, então é só “sentar e esperar”.

O número que realmente importa não é de veganos, mas da exploração e matança de animais – como as que envolvem o consumo. Se isso não diminui, de que adianta afirmar que o veganismo está crescendo? Isso pode ser maravilhoso, mesmo que mais animais estejam morrendo, se sua preocupação é identitária.

Marketing é algo discutível dentro do veganismo porque há exemplos de conflito com a ética. Usarei como exemplo uma divulgação da redução do consumo de carne que ocorreu há algum tempo. Na verdade, essa redução não era do consumo de carne em geral e sim bovina. Além de ter sido divulgada como se parecesse maior do que realmente era, a principal motivação para essa redução era a alta dos preços.

O que essa campanha não divulgou também é que as pessoas não reduziram o consumo de carne. Elas passaram a comer mais frangos e porcos. Carne vista como cara não faz as pessoas deixarem de comer carne e sim a buscarem outros tipos de carne – ou ovo. Mesmo partindo do utilitarismo de Peter Singer, isso poderia ser criticado. O motivo? Mais animais estão morrendo, não menos.

Portanto explorar isso de forma positiva, não apenas ignora a dimensão social como é especista – porque faz um recorte que desconsidera o aumento de indivíduos reduzidos a produtos. Se em um movimento com motivação ética passamos a crer que podemos construir dados ou narrativas em que há falta de honestidade, é preciso não esquecer também que isso pode ser instrumentalizado por quem está do outro lado – que pode não apenas combater essas afirmações como também fazer parecer que o meio vegano é antiético.

Sejamos sensatos, é muito mais coerente reconhecer que a situação é grave hoje envolvendo a exploração animal e encarar isso de frente, com seriedade e reconhecendo falhas, do que perder tempo promovendo uma ideia de que estamos nos aproximando de um mundo vegano, quando isso não está ocorrendo.

Pensar de outra forma serve apenas para agradar veganos que preferem o conforto da própria bolha (uma expressão identitária). O número de veganos hoje não é suficiente para transformar estruturalmente a realidade em lugar nenhum. Também não está envolvendo um número suficiente de pessoas não veganas nessa transformação – e ao não fazer isso, o próprio marketing explorado nesse contexto sequer está cumprindo o papel que se afirma ter.

Parte disso vem também de algo que considero muito incômodo no movimento vegano – a resistência à autocrítica. Isso também tem relação com a defesa de que o veganismo precisa ser explorado de forma “positiva”. Mas se essa exploração “positiva” do veganismo não está impactando sequer numa pequena redução da matança geral de animais para consumo, é coerente dizer que ela que é eficaz? Coerente é insistir que devemos comemorar uma redução no abate de bois porque há menos pessoas em condições de comer carne de boi e por outro lado há mais frangos e porcos sendo mortos?

O mesmo vale para o marketing que diz respeito ao chamado mercado vegano. Podemos divulgar o máximo possível de pesquisas que fazem parecer que a cada ano estamos caminhando para uma realidade “mais incrível” de disponibilidade de produtos livres do uso de animais. Mas, na prática, a quem esses produtos chegam e o que isso está mudando, se há mais animais sendo explorados e mortos para fins alimentícios? Por isso, também recomendo a leitura do meu artigo “Foco em produtos é ‘um tiro no pé’ do movimento vegano”.

Observações

Essa reflexão serve para outros exemplos envolvendo o veganismo e não somente para os que citei.

A ideia de que está havendo uma grande mudança, mesmo quando não está, pode ter um efeito contrário – fazer as pessoas acharem que se há outros mudando, elas não precisam mudar. Portanto deixar de reconhecer a gravidade da realidade pode ter um efeito reducionista em comparação com o ato de admiti-la e mostrá-la como uma necessidade que depende do envolvimento do maior número possível de pessoas.

Brasil tem um consumo médio de carne que é um dos mais elevados do mundo – 100 kg/ano e estima-se que chegará a 110 kg/ano até 2030 (OCDE/FAO).

Segundo o IBGE, o Brasil bateu recorde de abate de animais em 2024.

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Jornalista (MTB: 10612/PR), mestre em Estudos Culturais (UFMS) com pesquisa com foco em veganismo e fundador da Vegazeta.

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