“Desenvolvi depressão trabalhando em matadouro”

Foto: Aitor Garmendia

Tiago Farias dos Santos, de 31 anos, pediu demissão depois de passar pouco mais de um ano abatendo suínos na região Centro-Sul do Paraná. “Desenvolvi depressão trabalhando em matadouro”, resume. Com fala pausada e um pouco de hesitação inicial, ele demonstra desconforto em lembrar dessa etapa de sua vida, mas diz que “talvez seja relevante compartilhar uma realidade pouco conhecida pela maioria das pessoas”.

Tiago começou a trabalhar em um matadouro de suínos por acaso, após ficar sabendo por meio de um conhecido que “estavam contratando e não era preciso experiência”. Em 2018, ele mudava de uma atividade para outra e seu trabalho anterior havia sido como servente de pedreiro na região de Guarapuava.

Buscando renda fixa numa época em que diz que não havia garantia de serviço para o mês todo como servente, ele acabou aceitando. “Era uma oportunidade de ter um salário, ainda que fosse pouco”, justifica e admite que não sabia como funcionava trabalhar em um matadouro. Santos nunca tinha abatido um animal.

“Achei que não teria problema e que daria conta, e que talvez nem fosse preciso abater, só descarnar ou algo assim”, conta. Mas o trabalho realmente era como abatedor, magarefe. “Eu nem conhecia essa palavra ainda. Nunca tinha ouvido, só que me deram uma chance e não achei que deveria recusar.”

Ele não esquece da primeira impressão que teve quando viu um caminhão chegando e descarregando um grande número de porcos. “Foi novidade pra mim. Eram animais bonitos, mas estavam meio sujos. Deve ter sido por causa da viagem, do amontoamento”, comenta.

E continua: “Porco que não queria descer ou demorava recebia cutucada e se apressava. Só depois me dei conta que não era um cutucão normal, algo que não machuca. Era na realidade uma ‘ferramenta’ que dava choque.”

O primeiro animal

Alguns animais tinham sinais pelo corpo. Tiago não tem certeza se naquela primeira situação era por causa da “força do choque” ou alguma agressão anterior. “Pode acontecer nos dois casos”, avalia.

Uma semana depois do treinamento, ele foi colocado para “recepcionar” os porcos. “O primeiro animal que veio pra mim ficava me olhando e ainda perto dali já tinha outro, porque o espaço não era grande. Era um ambiente difícil.”

Santos teve de “atordoar” o animal por eletronarcose. “Na primeira vez sozinho me senti mal quando o porco começou a soltar uma espuma pela boca enquanto recebia choque elétrico. Os olhos dele estavam esquisitos já, como se o sinal de vida estivesse desaparecendo, e os pés meio que torcendo. Foi uma coisa horrível, medonha. Me falaram pra não olhar muito, mas dizer isso é como dizer o contrário, porque você quer saber o que está acontecendo e como tudo aquilo funciona, ainda mais porque é a primeira vez.”

Para Tiago, a “insensibilização” é como “fritar o cérebro de alguém”. “Você pensa em filme de terror, em execução na cadeira elétrica, associa com bastante coisa mesmo. É uma experiência bizarra e que não acho que alguém esqueça – o que pode variar é a reação de cada um na hora e com o passar do tempo, acho.”

Mas para continuar ali, ele teve de aprender a afastar “aqueles pensamentos estranhos de associação”. “Ou eu me acostumava, independente do quanto tudo aquilo era ruim ou eu iria embora, não receberia nada e continuaria na mesma situação de antes. Eu tinha uma mãe doente. Na verdade, minha mãe ainda é doente, então pensei apenas em encontrar um jeito de me acostumar. Você acha que não tem alternativa…”

Com os meses, ele acabou se adaptando ao que define como uma “estranha rotina”, e ignorou que embora estivesse trabalhando, cumprindo sua função como abatedor, algo mudava nele. “Depois de alguns meses, não sei dizer agora quantos, pessoas próximas perceberam o meu comportamento mudar. Falavam que eu estava sempre de mau humor, impaciente e me irritando com muita facilidade, até mesmo agressivo, coisa que nunca acontecia.”

“Quem sonha em matar animais?”

Tiago começou a pensar a respeito, mas acreditava que sua situação não era pior do que antes, então não conseguiu entender a razão para aquelas observações. “Achei que não fosse nada, que estavam enganados, até que comecei a ter insônia e a acordar nervoso ou me sentindo mal. Tinha pesadelos estranhos em que o chão do matadouro se abria e eu caía dentro. Não quis buscar ajudar ou tentar entender o que era. Apenas continuei minha vida. Pensei só que era coisa passageira, fadiga ou besteira da minha mente.”

Questionado sobre como se sentia em abater animais, ele revela: “Quem sonha em matar animais ou fica feliz com isso? Acho que só se você for um psicopata mesmo. Porco é um animal grande e dócil, e acho difícil existir outro que fique tão desesperado na hora do abate quanto ele quando percebe que vai morrer. Acho que do seu jeito porco chora, mas ali é ele abatido ou você na rua, e por mais cruel que isso pareça, você acha que ainda vale a pena estar ali. Você se apega a isso como sua única verdade…”

Tiago usava abafador para não ouvir os guinchos ou gemidos dos suínos, que às vezes iam para a degola sem o “atordoamento adequado” porque acontecia de a máquina não funcionar direito, o que acentuava o sofrimento.

Outros morriam no momento da “insensibilização”, e quando isso ocorre é preciso sangrar o animal um minuto depois. “Você sabe por que tem porco que morre na hora da eletronarcose? Imagine um animal desesperado, com o coração a mil, e recebendo choque. Quais são as chances de morrer ali mesmo, antes da degola? Bem altas, pode acreditar…”

A experiência diária de matar suínos, animais que ele diz que aparentavam bom estado de saúde, que têm boa capacidade de percepção sobre o que acontece no matadouro e que, quando há possibilidade, resistem para não morrer, foi pesando na vida de Tiago sem que ele percebesse.

A depressão 

“O mais estranho é que no meu caso a coisa foi piorando depois, sendo que você imaginaria o oposto, por causa do hábito. Eu não hesitava em abater os animais. Mas um dia fiquei parado um tempo olhando pra uma porca e pela primeira vez me perguntei: ‘O que eu tô fazendo aqui? Que merda de trabalho é esse? Por que eu ganho a vida matando?’ Pensei em quantas ninhadas aquela porca reprodutora teve e o que aconteceu com elas. Aposto que todos os leitões já tinham morrido antes dela chegar ali. Eu estava prestes a surtar.”

Tiago buscou ajuda motivado por uma amiga e foi diagnosticado com depressão perto de completar um ano no matadouro, quando já não via sentido em nada do que fazia. “Percebi que minha situação tinha tudo a ver com o meu trabalho.” Meses antes começou a desenvolver pensamentos suicidas e já não tinha interesse em socializar. Sua rotina era ir para o trabalho e voltar para casa, mas chegou um momento em que já não cumprimentava ninguém e falava apenas quando lhe perguntavam algo.

“Dependendo, eu nem falava nada. Nunca queria conversar. Demorei pra perceber que era como se eu estivesse morrendo por dentro. Não sei, mas acho que se continuasse ali, talvez não estaria aqui hoje. Basta eu pensar em tudo que aconteceu…”

Ele cita que outro colega de trabalho que reclamava bastante do serviço também se isolou e muitas vezes foi visto voltando pra casa embriagado ou chegando no trabalho fedendo, até que um dia foi demitido. “Hoje acho que foi a melhor coisa que fizeram por ele. Acredito que não tinha coragem de pedir demissão e fiquei sabendo que em seguida parou de beber. Creio que deve ter uma relação aí”, conclui.

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Jornalista e especialista em jornalismo cultural, histórico e literário (MTB: 10612/PR)

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