Por que fazemos com animais o que psicopatas fazem com humanos?

A série “Monstro: A História de Ed Gein”, da Netflix, traz uma cena no segundo episódio em que Alfred Hitchcock conversa com Robert Bloch, autor do livro “Psicose”, inspirado na história do serial killer Ed Gein.

Quando Bloch conta que Gein tirava a carne dos ossos de corpos humanos (ele os esfolava) e vemos um crânio coberto pela pele do corpo de alguém que morreu recentemente, a cena é contrastada pela imagem de partes de uma ave com pele tostada no prato de Hitchcock.

A imagem incômoda do crânio que recebe a pele de outro corpo e que simboliza a mãe de Gein gera, por rápida associação, um incômodo visual com a carne no prato de Hitchcock.

Isso estimula um desconforto porque a carne não humana, mesmo que normalizada para esse fim, que é comê-la, aparece na sequência do que é indissociável da carne humana, que é sacralizada.

Quando o incômodo com a carne humana, ou o que a evoca, nos impele a um desconforto mesmo que momentâneo com a carne não humana, isso decorre de não reagir dentro dos limites do que as separa – por reconhecê-las, apesar das diferenças como fins, como carne.

Nisso, o comum desejo pela carne é ofuscado pela materialidade da morte, um incômodo que surge no momento com a identificação por semelhança. Então indiretamente o que nos incomoda sobre o corpo humano pode nos incomodar sobre o corpo não humano.

E o mal-estar em relação à carne humana e que envolve na sequência a carne não humana tem como ponto de partida o fato de o corpo humano ser tratado como inviolável, mesmo quando qualquer uso que se faça dele não envolve violência contra o corpo vivo.

Portanto é o “lugar do primeiro corpo” como cadáver que refletirá algum impacto ainda que momentâneo sobre o “lugar do segundo corpo”, que tem seu uso normalizado mesmo quando indissociável de violência.

A não normalização do corpo humano morto e os usos que são feitos dele entram em conflito com o que normalizamos em relação ao corpo não humano. Isso se torna algo ainda mais digno de reflexão quando o que é visto como um absurdo e um horror feito com o corpo humano é o que se normaliza em relação a tantos animais.

A pele humana como matéria-prima

Sem dúvida, o uso de animais não humanos é culturalmente dominante, mas o que Ed Gein faz com corpos humanos mortos, e que chocou e ainda choca muita gente, é algo comum em relação ao uso de tantos animais. Afinal, se ficamos chocados com a pele humana sendo usada como matéria-prima para confeccionar alguma coisa, não ficamos em relação a outros animais usados também para essa finalidade.

Não há dúvida de que as ações de Ed Gein são reprováveis, mas até mesmo sua ideia de usar a pele humana para tais fins não surge no vácuo. Gein caçava animais. Ele sabia como lidar com peles, como tratá-las, curti-las. Possivelmente seu olhar para a pele humana e o que fazer com ela veio também com a conclusão de que a pele humana, apenas por ser pele, pode ter o mesmo fim da pele de outros animais.

Há uma cena na casa de Gein em que Adeline vê a cadeira que recebeu um tecido de pele humana e nela aparece um mamilo. “É só um úbere, certo?”, ela pergunta, buscando confirmação. Adeline quer que aquilo em que deseja acreditar seja validado. “Você pode chamar disso”, responde Gein. Sua psicose atua também na obliteração da distinção. Para ele, não há diferença entre usar a pele de uma vaca ou uma pele humana.

Ed Gein, claro, é um serial killer, mas se diz algo que nos incomoda em relação aos humanos, mas não em relação aos não humanos, é porque relativizamos tais usos com base em uma moral especista.

Mesmo que Ed Gein matasse uma vaca, arrancasse sua pele e a usasse para confeccionar a cadeira, nenhum mal seria apontado sobre isso porque acredita-se que a vaca não pode ser um fim em si mesma, ainda que seja um interesse dela sê-lo – já que nenhum animal deseja ser prejudicado por ações humanas.

Embora existam animais que sejam mortos para obtenção de couro, esse uso ocorre principalmente a partir do couro como subproduto, já que o consumo de carne tem papel dominante na oferta do couro.

Também podemos paralelizar isso com Ed Gein que, no início, usava a pele de corpos que ele desenterrava do cemitério de Plainfield. Ainda assim, mesmo que Gein não tenha matado essas pessoas, sua ação é vista como execrável porque é uma violação e uma ameaça à sacralidade do corpo humano e ao seu reconhecimento como um fim em si mesmo – algo que não estendemos a muitos outros animais.

Isso mostra também como o excepcionalismo humano opera uma lógica de consideração que jamais é ponderada em relação a outros animais, se esse exemplo ratifica que não é somente sobre a dimensão de violência, mas também sobre o valor social, moral e até mesmo religioso do corpo.

Para onde não estamos olhando

Ed Gein passa a instrumentalizar diversas partes de corpos humanos, como, por exemplo, os “bowls” de crânios que ele faz e os ossos que ele usa para outras finalidades. Vários desses reprováveis e chocantes usos são normalizados e não tratados como reprováveis quando provenientes da morte de animais não humanos. E tais usos ocorrem em grande escala e são vistos comumente como somente positivos.

Tudo que Ed Gein faz em relação a usos e mortes serve também como exemplo para chamar atenção para onde não estamos olhando – porque o que nos incomoda e nos choca é parte da vida ordinária de muitos animais submetidos às nossas relações de consumo.

Para o animal que é vítima de exploração e morte, não importa nossa motivação, se somos cruéis ou se estamos apenas reproduzindo o que é culturalmente dominante. Seu interesse em não ser prejudicado ou sua reação diante de um mal imposto também não muda com base em nossa condição mental.

Ao longo da história, vários escritores e pensadores, até como provocação, declararam de forma diversa que, para os animais a quem impomos violência visando consumo e/ou lucro, mesmo que isso resulte de uma imersão cultural, o ser humano pode ser a forma de um mal, se é tudo que conhecem sobre nós ou que se torna a “característica mais marcante”.

A coisificação do corpo

Em uma cena do quarto episódio da série “Monstro: A História de Ed Gein”, Ed Gein imagina a nazista Ilse Koch, que usava a pele de judeus para fazer abajures e encadernar livros, dizendo que a pele de Bernice Worden “daria um belo sofá”.

É uma afirmação que não tende a gerar incômodo se feita sobre o couro proveniente da pele de bois e vacas, porque comumente não se vê o corpo, e a pele como parte desse corpo, como se pertencesse a esses animais – o que decorre da normalização da exploração, violação e coisificação de corpos não humanos.

No mesmo episódio, Tobe Hooper, diretor de “O Massacre da Serra Elétrica”, inspirado em Ed Gein e que é um filme que serve também a uma discussão sobre o sentido do matadouro na consideração humana, ouve na adolescência que Gein tirou a pele das vítimas para confeccionar um macacão.

Ele fazer com corpos humanos o que é tão comumente feito com tantos animais intriga Hooper, já que Gein dessacraliza o corpo humano, colocando-o também numa condição que, embora não generalizada, também é de corpo analogamente matável e coisificável.

No episódio 5, em uma conversa com Ed Gein, Adeline diz que ele iria adorar Nova York porque há muitos curtumes na cidade, além de um distrito de frigoríficos. Pensar o corpo humano em relação ao corpo não humano é um dos pontos em que a brutalidade e o horror só são considerados porque o espectador sabe de onde vem a experiência à qual Adeline faz referência.

A conversa poderia passar batida se envolvesse somente “animais normalizados como criados para morrer”. Portanto é a conexão entre essas duas realidades que favorece um estranhamento em que uma realidade também pode ser pensada a partir de outra.

No episódio 6, a polícia encontra roupas feitas de pele humana penduradas dentro da casa de Ed Gein, assim como abajures, máscaras, etc. Gein não atribui finalidade “utilitária” somente à pele, embora tenha uma relação “especial” com ela. Muitas partes de corpos são encontradas pela casa – tendo usos diversos ou sendo preparadas para usos diversos.

A máxima de “que tudo se aproveita de um boi”, por exemplo, que é reproduzida também em “mapas do corpo bovino”, é adotada por Gein em relação aos corpos humanos escolhidos (ele “até” divide a carne humana com os vizinhos sem que saibam que é humana) – com a diferença de que corpos não humanos não recebem atenção pela normalização da violência contra eles.

“Como se fosse uma porca”

A cena em que o policial Frank Worden encontra sua mãe estripada por Ed Gein “como se fosse uma porca”, nas palavras de Worden, incomoda porque ocorre com ela o que é considerado horrível contra um ser humano, mas não contra uma porca. A experiência suína não importa, e apenas por não ser humana. Logo, serve apenas como comparação para reprovação da experiência humana por mimetização.

Na verdade, todas as cenas que envolvem a experiência humana como imitação da experiência não humana são ignoradas na dimensão de experiência não humana – o que é considerado relevante e o que incomoda não ultrapassa a condição humana, mesmo que a experiência não humana também seja de violência e morte.

No episódio 7, Ed Gein conta que um dia encontrou sua mãe estripando um porco. Ele descreve a experiência como horrível e que vomitou ao testemunhar o abate. Esse é um relato que vem de alguém que tratou corpos humanos como se estivesse em um matadouro.

Gein opera nesse momento uma desconexão validada na afirmação decorrente de uma alucinação: “Como eu poderia fazer isso?” Ou seja, na negação de autoria dos assassinatos e na reivindicação de uma pueril sensibilidade durante o delírio de uma conversa com Ilse Koch, ele admite não ignorar os usos feitos de partes humanas como a pele, mas nega a violência envolvida.

Esse é um ponto também intrigante porque, apesar das diferenças, já que Gein é um serial killer, o mal comum contra os animais, que envolve, por exemplo, o consumo, prospera com os processos de desconexão – de desconsideração ou negação das implicações envolvidas. A grande diferença é que o que é feito o tempo todo e com tantos animais não decorre de transtornos mentais graves e sim da normalização do lugar de violência imposto a eles a partir do especismo.

Observações

Se nos incomodamos com a cadeira de pele humana de Ed Gein, por que não nos incomodamos com um casaco de couro ou um banco de couro? A resposta é o especismo – um sistema moral e arbitrário que atribui direitos e considerações diferentes com base única e exclusivamente na espécie.

O sofrimento, o medo e a morte são experiências absolutas para o ser que os experimenta. A “cultura” ou a “psicose” do agressor são irrelevantes para a vítima. Nenhum animal aceitará melhor o abate porque quem o mata não é um sádico, mas “somente alguém fazendo o seu trabalho”.

Normalmente o couro não é a razão de sofrimento de um boi ou de uma vaca, mas não deixa de ser parte da coisificação, produtificação e da ideia de posse sobre seu corpo esfolado na indústria da carne. Portanto o couro não deixa de refletir a violência e morte em relação.

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David Arioch Barcelos

Jornalista (MTB: 10612/PR), mestre em Estudos Culturais (UFMS) com pesquisa com foco em veganismo e fundador da Vegazeta.

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