Gado que não valia o matadouro

“Gemia como criança, mas a pouca carne não valia a salvação” (Arte: Go Art)

Esquentou tanto que uma bola de fogo se formou no centro do campo, onde o gado já não pastava porque tinha morrido de fome. Falaram que não valiam o matadouro. “Um tipo de justiça divina”, outros disseram.

Arrastei a sola pela terra e pude sentir pedaços de ossos cobertos pela gramínea seca e amarelecida – já sem vida. Dali não brotava nada há muito. Doutro lado, o fogo torrou o velho curral.

Crianças recolhiam pedaços de crânio bovino pra fazer máscara e arminha e brincar de lutinha. Filho de ex-peão morreu antes da minha chegada – golpe de faquinha de osso, de brincadeira. “É maldição, sei que é”, comentou um velho de passagem.

Era pedaço de animal que agonizou por semanas até morrer. “Nem tinha mais carne, e a gente via só um arco coberto pela pele já transparente. Tava morto, mas tava de pé ainda.” Caiu sobre os próprios pés, se quebrando, e deitou à força.

“Valia pouco e já não valia nada”, balbuciou o velho na lamentação da aceitação. Boi torrou aos poucos no sol, virando churrasco de pele e ossos. “Gemia como criança, mas a pouca carne não valia a salvação”, ouvi.

Havia pedaços de couro sobre o que foi um roseiral e urubus caídos sob a choupana arrastada pela força do fogo. Não foram queimados, mas ludibriados pelo que comeram e pelo que não comeram.

“A água, o solo, o sal, o verde que sucumbia, tudo empeçonhado. A bicharada foi abandonada.” Ninguém se importava. Alguém ficou de passar por lá mais tarde pra recolher os ossos pra moer e fazer farelo pra alimentar a nova boiada.

“Esses bichos têm de pagar alguma coisa pelo pouco que viveram e comeram.” E a bola de fogo continua rolando sobre o campo.

Jornalista e especialista em jornalismo cultural, histórico e literário (MTB: 10612/PR)

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