Ge Mendes: “O veganismo me ensinou muito, principalmente a ser mais humana”

“Contei para a minha mãe que eu costumava fazer as refeições fora de casa porque eu dava a carne para o cachorro e para os gatos” (Foto: Arquivo Pessoal)

Durante o período em que vivemos na roça, se não fosse o abate de animais, poderia dizer que tínhamos uma vida quase 100% vegana. Cultivávamos quase tudo que consumíamos, desde grãos, frutas, verduras, legumes. Até nossa roupa era tecida a partir do algodão que era plantado e colhido por nós.

Minha mãe cardava, depois fiava na roca e os novelos de linha iam para o tear. Fazíamos polvilho, farinha, peneiras, vassouras; tanto para nós quanto o povo que procurava. Com o tempo, aprendi a bordar na máquina – aquele bordado antigo, e eu fazia para o povo. Minha mãe costurava por encomenda e fazia rendas.

Plantávamos, arroz, feijão, café, gergelim. O arroz era limpo, retirado da casca no pilão de madeira. Muito tempo depois, meu pai começou a levar para as máquinas de beneficiar que ficavam na cidade. O café era colhido, exposto ao sol e ia para o pilão para a extração da casca. Depois era torrado em panela de ferro e só era moído na hora do preparo.

Todos os bolos dos lanches eram do fubá extraído do milho, ou do polvilho também extraído por nós em processo manual. Consumíamos pouco açúcar branco porque esse só vendia na cidade e, apesar de estarmos distantes apenas 10 quilômetros, não tínhamos o hábito de ir até lá com frequência – só quando era necessário.

Então usávamos melado da cana-de-açúcar ou até mesmo açúcar, esse que hoje é chamado de mascavo. Tínhamos canavial e moedor de cana. Moíamos a cana tanto para tomar caldo, fazer melado e doces quanto para usá-la como ração para o gado na época da seca.

Todo dia tinha bolo e caldo de cana para o lanche. O bolo de fubá que levava bicarbonato e sementes de erva-doce na massa era assado em panela de ferro e com brasas em cima. Não tínhamos forno, e o caldo de cana tomávamos com gotas de limão.

O melado sempre era feito nos finais de tarde. Levávamos o caldo pra ferver e ele soltava uma espuma escura que era retirada. Em seguida, o caldo ia engrossando. Na manhã seguinte, quando queríamos açúcar era só deixar o caldo mais grosso que o normal e ele virava cristais. Nossos doces também eram de cana de açúcar, ou com gergelim ou mamão.

Não tínhamos luz elétrica. Tínhamos uma TV pequena em preto e branco que funcionava à bateria. Era carregada quando o triturador era ligado para triturar capim e cana para a ração. O alternador carregava a bateria, e com isso também tínhamos água quente para o banho. A luz era proveniente de lamparina e só anos depois chegou a luz elétrica.

A nossa água vinha de uma nascente e corria para um rego de água que corria no quintal e então para um córrego próximo. Os patos amavam nadar no rego de água, e por essa razão minha mãe dizia que só podíamos beber da água do córrego porque lá os patos não sujavam.

Fazíamos colchões com capim de vereda ou palha de milho. Nossos travesseiros eram preenchidos com uma pluma tão macia quanto algodão, proveniente de um fruto do cerrado, de formato parecido com o cacau, que chamávamos de paina.

Para arear as panelas, usávamos uma folha áspera de lixeira, uma espécie de árvore do cerrado – ou areia fina do córrego que também dava bom resultado. Todos os dias antes de acender o fogão a lenha, a cinza era retirada e colocada em uma lata. Quando estava cheia, minha mãe molhava e aparava o líquido. Ela chamava de “decuado” e fazia sabão.

Também extraíamos azeite de mamona, que era usado para tratar ferimentos – inclusive é ótimo para tratar furúnculos, bastando aquecer e colocar em cima. Nossos remédios eram caseiros e só íamos ao médico quando não tinha mais jeito.

Os parentes e vizinhos de fazendas próximas gostavam de ir passear lá porque tínhamos de tudo um pouco. Engraçado que tudo isso parece que foi há séculos, mas não faz muito tempo. Ainda reconheço cada erva do cerrado e lembro de tudo que aprendi. Dessa parte sinto orgulho, mas existe outra parte que é dolorosa.

Levei duas surras, uma porque me recusei a matar uma pata, e outra pelo tatu que não consegui abater. Apesar de não ter conseguido evitar as mortes dos inocentes, eu não abati nenhum, sequer retirei um peixe da água. Hoje penso que Deus faz as coisas corretas mesmo, porque hoje eu me sentiria um monstro se tivesse participado dos abates.

Quando me tornei vegana, eu estava na casa de minha mãe e contei para ela que no passado eu costumava fazer as refeições fora de casa porque eu dava a carne para o cachorro e para os gatos. Ela sorriu e disse que nunca gostei de carnes e depois perguntou que religião é essa que estou seguindo.

Ela tem 85 anos e quando a visito, ela quase não come carnes porque cozinho e preparo uma variedade de verduras e legumes para ela. O veganismo me ensinou muito, principalmente a ser mais humana. No início, eu não tinha muita paciência com quem não era vegano, mas com o tempo percebi que eu precisava aprender mais.

Ge Mendes, professora de Uruaçu (GO), mas que vive em Brasília (DF).

Jornalista e especialista em jornalismo cultural, histórico e literário (MTB: 10612/PR)

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