
Ainda que se insista hoje em uma crença de que a abstenção do consumo de animais é contemporânea, a história tem muitos exemplos de humanos que viveram em diferentes períodos, e mesmo há milhares de anos, e que reprovavam esse consumo.
Envoltos em mistério, os órficos, por exemplo, que teriam influenciado Pitágoras, nome mais conhecido quando se fala em oposição ao consumo de animais na Grécia Antiga, surgiram há 2,6 mil anos e acreditavam na familiaridade entre humanos e outros animais. Para eles, tanto humanos quanto outros animais compartilham de uma essência divina.
Mesmo que se diga que a crença que eles tinham na transmigração de almas era o que os motivava a não se alimentarem de animais, ou seja, a crença de que a alma que habita um humano poderia habitar um não humano, embora pudesse evocar um elemento condicional para essa abstenção (o temor de prejudicar um semelhante antes humano), não tinha uma motivação antropocêntrica, porque os órficos acreditavam exatamente em uma essência divina comum entre os seres.
Essa consideração, que pode parecer contraditória, reflete a complexidade do orfismo que surgiu na Grécia Antiga como uma forma de ascetismo moderado em que se defendia a sacralidade da vida, portanto um viver de acordo com o respeito pela vida. Para os órficos, humanos e não humanos compartilham uma alma divina (daimon).
“Um dos pilares da ascese órfica seria o vegetarianismo e a recusa em se verter sangue. Esse vegetarianismo abrangia tanto a alimentação quanto as práticas de sacrifícios. Como os órficos acreditavam na transmigração das almas e como estas poderiam transmigrar para qualquer animal, abstinham-se de matar qualquer ser animado”, consta no livro Fragmentos órficos”, publicado pela UFMG (GAZZINELLI, 2007, p. 22).
Assim, séculos antes da era comum, os órficos já reconheciam a partir da transmigração de almas que se os humanos têm almas, outros animais também têm. Portanto há um conflito com o que tende a ser promovido como um excepcionalismo humano, o que não parece agradável principalmente para quem defende ou normaliza o mal contra os animais pela via da inferiorização. Não por acaso, a negação de que os animais tenham alma também seria usada por Descartes para reduzir os animais não humanos a meras máquinas, contribuindo para a exclusão deles de uma consideração moral.
“[…] órficos e pitagóricos seguiam os mesmos preceitos ascéticos, provavelmente derivado das crenças comuns na transmigração e imortalidade da alma. Os dois grupos praticavam restrições alimentares, ritos fúnebres e cerimônias de purificação e iniciação. Dependendo da fonte, o vegetarianismo pitagórico é descrito como mais ou menos severo, ou seja, como mais próximo ou mais distante do orfismo” (2007, p. 23-24).
Em “Fragmentos órficos”, a referência sobre “derivar das crenças comuns” evoca a interação com outros povos – como a transmigração de almas tendo chegado ao mundo grego por meio do contato com outras culturas. Isso é algo que mais tarde também é referenciado por Voltaire em “Pensamentos vegetarianos”.
Acredita-se que os pitagóricos possam ter aperfeiçoado a percepção e motivação para a abstenção e consumo de animais, podendo mais tarde ter influenciado também não pitagóricos que promoveriam a abstenção do consumo de animais, em um período também já muito posterior ao neopitagorismo.
“Em conclusão, é consensual que vários preceitos ascéticos da escola pitagórica teriam sido apropriados do orfismo. Esses preceitos visavam a purificação dos iniciados e tinham uma dimensão ética positiva, particularmente o vegetarianismo” (2007, p. 25).
Tansmigração de almas e animais
Normalmente o olhar para a transmigração de almas na sua relação com o vegetarianismo tende a evocar uma percepção que limita-se a um misticismo antropocêntrico. Mas isso seria também ignorar que a crença no trânsito das almas remete ao que só seria possível por uma relação de familiaridade.
Afinal, renascer como outro animal é perpassar por animalidades, e assim experimentar o que ele experimenta, evocando sua própria condição – o reconhecimento do que é o outro também na sua especificidade.
Essa conclusão incita um conflito porque antagoniza o sentido tão comum atribuído a um “vegetarianismo místico” como sempre centrado no ser humano ou restrito às importâncias humanas, se envolve o deslocar-se do humano ao não humano e partindo também de uma dimensão de alteridade.
Claro que isso não significa negar que tenha havido quem o fizesse de forma a centrar-se somente nas consequências que poderiam atingir os humanos que buscavam a purificação de alma – uma preocupação que lembra também a própria defesa da consideração pelos animais não humanos por deveres indiretos, como seria defendida pelo filósofo Immanuel Kant.
De qualquer forma, não se pode dizer que era apenas sobre a crença de que ao causar mal a um animal, como matá-lo para comê-lo ou para qualquer outro fim, havia o risco de um humano renascer como o animal morto, e mesmo que fosse, o que ainda é motivo de controvérsias sobre as práticas órficas, não deixaria de evocar que se uma alma pode habitar tanto um corpo humano quanto não humano é porque isso só é possível por uma conexão precedente entre diferentes formas de vida, humanas e não humanas.
Em “Fedon”, por exemplo, Platão descreve a metempsicose órfica como fundamento da ética alimentar. Já em sua obra “Leis”, citada em “Fragmentos Órficos”, há uma referência ao ascetismo órfico e sua reprovação ao derramamento de sangue para consumo ou com finalidade sacrificial:
“De fato, vemos que a prática de sacrifícios humanos persiste ainda hoje entre muitas raças, enquanto em outras partes ouvimos falar de um estado oposto, quando não podíamos provar nem da carne de boi e os sacrifícios feitos aos deuses não eram de animais, mas de bolos e frutas da terra encharcadas de mel e outras oferendas igualmente puras e sem sangue” (2007, p. 23).
Nessa referência, embora não haja uma exclusão em relação a tudo que é de origem animal, poderemos perceber mais adiante que também não era somente sobre a alimentação.
“Os homens se abstinham da carne porque seria ímpio comê-la, ou manchar os altares dos deuses com sangue. Era uma espécie de vida órfica, como é chamada, que era levada por aqueles da nossa espécie que estavam vivos então, comendo livremente das coisas inanimadas, mas se abstendo do que fosse animado” (2007).
Platão, que referencia um estado em que não se alimentar de animais já era algo que poderia ser praticado sem dificuldade há milhares de anos, também cita nesse contexto a proibição do uso de lã, algo compartilhado, segundo o historiador grego Heródoto, por egípcios, órficos e pitagóricos. “Essa proibição parece ser um desdobramento do vegetarianismo, que seria proibitivo em relação a produtos animais de maneira geral” (2007, p. 23).
“Em um fragmento das Cretenses de Eurípides (citado por Porfírio), em que se fala sobre o culto de Baco, há também referências a outras interdições órficas: “Vestido em roupas todas brancas, eu afasto o nascimento de humanos, não toco o caixão dos mortos e me guardo de comer comida que já teve vida.”
Influência órfica sobre Pitágoras e os pitagóricos
Acredita-se que, pela antiguidade do orfismo, pitagóricos foram influenciados também pelo ascetismo órfico.
Além disso, Pitágoras, seus discípulos pitagóricos e os órficos têm também em comum uma consideração pela transmigração de almas que já existia também fora de um contexto essencialmente grego – como a Índia.
O que também fortalece a ideia de o orfismo ter influenciado o pitagorismo é que se o orfismo já existia há 2,6 mil anos, como se acredita, pode ter surgido pouco antes do nascimento de Pitágoras.
“Essa afinidade entre orfismo e pitagorismo é mencionada repetidamente pelos antigos. Jâmblico, ao tratar do discurso do Timeu de Platão, diz: ‘Deve-se fazer a seguinte consideração, Timeu, sendo um pitagórico, seguia princípios pitagóricos. E, por sua vez, esses princípios são órficos … o que o próprio Pitágoras declara” (2007, p. 24).
A referência a Jâmblico é relevante porque ele é o filósofo que registrou na biografia “A vida de Pitágoras” muito do que se sabe sobre Pitágoras hoje, inclusive em relação à abstenção do consumo de animais – o que seria uma influência também para o vegetarianismo ético ocidental e posteriormente para o próprio veganismo no Ocidente, que seria inspirado em nomes influenciados também pelo que é atribuído a Pitágoras pelos registros de Jâmblico e de outros filósofos, neopitagóricos ou não.
Podemos lembrar também que até a criação do termo vegetarianismo na Inglaterra no século 19, já que antes, claro, havia esse viver, mas não essa denominação, quem não consumia animais era comumente chamado de pitagórico. Isso revela a dimensão de sua importância nesse contexto, ainda que sua posição sobre o tema, assim como ocorreria também com outros filósofos posteriores a ele, e que favoreceriam uma dimensão mais ética da questão, tivesse sido ofuscada no mundo ocidental ou ocidentalizado por uma concepção especista dos animais de base aristotélica, inspirada especificamente nos animais como instrumentos.
Essa concepção seria convenientemente utilizada por Tomás de Aquino e pela Escolástica para defender em um contexto também filosófico a crença especista de que os outros animais existem para o uso humano, e que se consolidaria com a moral cristã ocidental.
“Analogamente, Proclo diz que toda a teologia grega derivava de mistagogos órficos e que Platão teria recebido a ciência completa dos deuses de escritos pitagóricos e órficos. Segundo Íon de Quios (Diogenes Laercio Vlll.8), Pitágoras teria escrito sob o nome de Orfeu, o que evidencia sua simpatia pela religião de mistério. Vários poemas órficos – como ‘A cratera’, ‘A rede’, ‘A túnica’ e ‘A lira’ – são, desde a Antiguidade, atribuídos a Cércops, Zópiro de Heracléia e Brontino de Metaponto, outros autores pitagóricos” (2007, p. 24).
Saiba Mais
O orfismo teve como base textos, crenças e valores atribuídos ao mítico Orfeu. Ademais, a própria possibilidade do individualismo, livre aos órficos, era também o que permitia o exercício das diferenças e fazia do orfismo um ascetismo moderado em que se buscava uma vida mais simples e de menor impacto.
O mítico Orfeu teria sido um poeta trácio que desceu ao Hades e trouxe ensinamentos sobre a alma e a vida após a morte. Portanto, embora o orfismo tenha sido difundido na Grécia para então chegar a outros lugares, o fato de ser um ascetismo inspirado em um trácio, portanto não grego, também evoca sua complexidade cultural.
É preciso lembrar também que a concepção que os órficos têm de Orfeu é uma reinterpretação do mito grego de Orfeu, já que não há na cultura trácia em si da época essa percepção do consumo de animais como houve de forma predominante entre os órficos. Ademais, há semelhanças entre os princípios da não violência defendidos entre os jainistas e os órficos que foram contemporâneos.
Os órficos levavam oferendas para Dioniso e os pitagóricos para Apolo.
Referência
GAZZINELLI, G, G. Fragmentos órficos. 1. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007. 117 p.
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2 respostas
Matéria excelente
Muito obrigado, Roger!