Voltaire: “Há algo mais abominável do que alimentar-se de cadáveres?”

Uma reflexão a partir da obra “Pensamentos vegetarianos”

Conheci o livro “Pensamentos vegetarianos”, de Voltaire, quando não havia sido publicado ainda no Brasil, e o citei em “Voltaire: Naturalização do abate animal nos embrutece”, publicação em duas versões – 2017 e 2019. Em 2021, a Editora Unesp traduziu e lançou a obra editada pelo pesquisador e professor de literatura francesa Renan Larue, que reúne o que foi publicado por Voltaire sobre a matança e consumo de animais.

Também considerado um dos principais pensadores do Iluminismo, Voltaire teve seu interesse pelo que mais tarde seria chamado de vegetarianismo estimulado por Porfírio, Rousseau e pelo hinduísmo. Larue lembra-nos que Voltaire abriu-se para o vegetarianismo aos 68 anos, por volta de 1761 (2021, p. 7). No ano seguinte, as críticas à matança e consumo de animais começaram a ganhar certa frequência na obra do escritor, filósofo e historiador francês.

O título que escolhi para este artigo, “Há algo mais abominável do que alimentar-se de cadáveres?”, é um questionamento provocativo feito por Voltaire em relação também com o paradoxal ato de “agradecer pelos assassinatos dos animais” (p. 12-13). Claro que as pessoas não dizem que agradecem pelos assassinatos, mas é o que ocorre, em conclusão, quando se agradece pelo alimento baseado na morte, conforme Voltaire.

“Por mim, não é correto que essa matança repugnante, exposta permanentemente em nossos açougues e nas nossas cozinhas, não nos pareça um mal, ao contrário, consideramos esse horror, muitas vezes pestilento, como uma benção […]” (p. 12).

Segundo Voltaire, é preciso tomar partido também sobre o mal que é o “extermínio de animais” (p. 11). Conforme o autor, trata-se de um mal mais negligenciado do que qualquer mal que surge como uma ação de humanos contra humanos.

Voltaire usa palavras, no século 18, que confrontam o eufemismo explorado nas nossas relações de consumo que visam uma percepção que suaviza um mal para não parecer um mal quando envolve a morte de animais.

A imposição da aceitação da violência

Ele defende que se temos condições de reconhecer ainda na infância que o mal contra um animal é realmente um mal, mesmo quando o fim é a alimentação, a repetição minimiza a resistência e facilita a aceitação.

“As crianças que choram ao presenciarem pela primeira vez um frango ser degolado, na segunda vez, riem” (p. 12). Encontramos exemplos disso mesmo hoje envolvendo crianças que rejeitam a carne, mas que depois acostumam-se quando são repetidamente forçadas a consumi-la. Assim, mesmo na ausência de uma banalização, há um fator dominante que influencia um tipo de consumo que já foi indesejado por uma criança.

Claro, Voltaire também não diz que isso é sempre usual, mas usa esse exemplo para ilustrar uma ideia de que somos condicionados à banalização, e sequer depois refletimos sobre isso como banalização.

Voltaire também traz críticas à moral ocidental quando observa que entre os loquazes oradores de sua época, ou mesmo beatos, ninguém fazia a mínima reflexão sobre “esse terrível costume, que entre nós se tornou natural”. “Temos de recuar até ao piedoso Porfírio e aos compassivos pitagóricos para encontrar alguém que nos encha de vergonha por nossa sangrenta voracidade, ou então temos de viajar até os brâmanes” (p. 14-15).

Influenciado por Plotino, Porfírio é autor de “Da abstinência do alimento animal”, em que ele também inspira-se em Pitágoras e Empédocles, com esses tendo sido influenciados pelo pensamento que mais tarde seria definido como originário do mundo não ocidental.

Em várias passagens de “Pensamentos vegetarianos”, Voltaire retoma que há uma crença conveniente de um mal não como mal: “Ninguém ainda ousou dar o nome de mal à essa carnificina universal” (p. 16).

Animais como máquinas: Voltaire contra Descartes

No “Tratado sobre a tolerância”, de 1763, o filósofo francês observa que, se reduzimos um animal a alimento, estamos reduzindo alguém dotado de sentimento, e um sentimento que pode ser mais refinado que o nosso; e com ideias ligadas a esse sentimento (p. 18). Voltaire também instiga uma outra consideração. Se foi Deus que dotou os animais dessa capacidade, quem crê nele deve comê-los?

Em seus estudos, Voltaire observa que encontrou povos escrupulosos na península da Índia em relação á recusa de comer animais, assim como “na seita de Pitágoras”, na Itália e na Grécia. Ele não cita Descartes, mas identificamos uma réplica ao posicionamento desfavorável aos animais defendido por Descartes em “Discurso do método”, quando Voltaire diz:

“Ao que me parece, é preciso ter renunciado ao saber natural para ousar afirmar que os animais são somente máquinas. Há uma flagrante contradição em concordar que Deus forneceu aos animais todos os órgãos do sentimento e alegar que não lhes deu sentimento” (p. 20).

Voltaire defende que os animais têm capacidade de sofrer, sentir alegria, temor, amor e cólera; e conclui que seria estranho que eles expressassem tão bem o que não sentem.

“Pensamentos vegetarianos” traz outra observação dele contra Descartes: “Que dó, que pobreza, ter dito que os animais são máquinas privadas de conhecimento e de sentimento, que agem sempre da mesma maneira, que nada aprendem, nem se aprimoram etc” (p. 23).

Voltaire também responsabiliza os filósofos de seu tempo pela perpetuação de um pensamento que, na contramão dos avanços do Iluminismo, manteve os animais não humanos excluídos de uma consideração moral que pudesse transformar a relação humana-não humana de forma a não prejudicar tantos animais.

Brâmanes e filósofos

Entre 1770 e 1772, Voltaire escreveu que os brâmanes foram os primeiros a impor a lei de não comer nenhum animal, considerando uma relação de familiaridade entre humanos e outros animais (p. 35). Ele postula que Pitágoras foi influenciado por esse pensamento que encontrou com os brâmanes na península indiana; e que mais tarde teve continuidade com os filósofos Plotino, Jâmblico e Porfírio, embora deve-se observar que mesmo com essa influência esses pensadores tiveram suas particularidades na forma de pensar a abstenção do consumo de animais.

Podemos perceber isso porque há um aumento da consideração moral que envolve a implicação do consumo de animais, que, como apontado por Voltaire, poderia ter sido influenciada pelo “medo que tinham de os homens se acostumarem com a carnificina, infundindo assim hábitos selvagens”.

Ele também lamenta que, mesmo com a tradução da obra de Porfírio, também influenciado pelos brâmanes e pelos persas, o impacto ficou muito abaixo do esperado em relação à sua abordagem do “horror ao costume de engolir em suas entranhas as entranhas de outras criaturas” (p. 36).

Um reflexo também de uma mudança de pensamento que revela uma percepção mais ética e menos mística é observada por Voltaire quando reconhece que Porfírio não fala da metempsicose ou transmigração de almas (que motiva a abstenção do consumo de animais a partir da crença de que esse hábito pode levar o ser humano a renascer como outro animal), e sim a partir da simples evidência de que outros animais também são animados como nós, têm ideias, sentimentos, memória, habilidade (p. 37-38). Portanto há uma continuidade do pensamento de Porfírio com Voltaire.

“Só falta a eles a palavra; se eles a tivessem, ousaríamos matá-los e comê-los?”, questiona Voltaire, concluindo que existiram há muito tempo filósofos “da mais rigorosa virtude”, mas que não prevaleceram sobre o hábito de matar e comer animais. O filósofo, assim como Rousseau, também sustenta que em suas pesquisas encontrou povos mais pacíficos entre os que não se alimentavam de animais.

Contos em defesa dos animais

No breve conto “Aventura indiana” (p. 49), de 1766, também publicado em “Pensamentos vegetarianos”, Voltaire apresenta um Pitágoras que se desculpa até mesmo com uma ostra após reconhecer, a partir da expressão do próprio animal, um mal em sua intenção de comê-la. Levando em conta o período em que foi publicado, e que mesmo hoje há defensores dos direitos animais que não veem problema na exclusão das ostras, a atitude de Voltaire, mesmo valendo-se da ficção, já estava muito à frente de seu tempo na consideração de interesses não humanos.

Em seus contos desse período, encontramos um Voltaire que recorre ao antropomorfismo para atribuir aos animais uma capacidade de linguagem em que eles expressam à oposição ao que é feito deles para uso humano. Esse apelo à ficção é também um meio em que Voltaire dá continuidade ao seu questionamento sobre o que faríamos se os animais falassem, se continuaríamos matando-os e comendo-os.

Em “A princesa da Babilônia” (p. 55), um pássaro lembra que já houve um tempo em que os humanos tinham uma relação pacífica com outros animais – o que permite-nos concluir que Voltaire pode estar referenciando um período que já foi chamado por outros autores de “era de ouro”, quando acredita-se que os animais não eram submetidos ao consumo humano. Em um determinado momento, o pássaro diz que outros animais pararam de falar porque os homens “adquiriram o hábito de nos comer em vez de conversar e se instruírem conosco” (p. 57-58).

A partir desse trecho podemos pensar em uma ruptura observada por Voltaire na relação entre humanos e outros animais a partir do momento em que tais animais passaram a ser percebidos somente como resultados do interesse humano de consumo. “Não conversar” ou “não se instruir” é também uma referência ao apagamento e impercepção em relação a quem é o animal para além do que se deseja impor a ele ou tirar dele.

Voltaire também coloca na boca do pássaro uma crítica à intensificação da instrumentalização dos animais usados para tração animal no século 18. “[…] os cavalos, que antes amavam vocês, agora os detestam” (p. 59). Impossível é não reconhecer que quando o ser humano submete um animal há um interesse, o que percebemos é que tudo tende a piorar; porque há um aumento da demanda por essa exploração ou porque há uma ressignificação do animal, no sentido não do que ele é, mas do que deve ser em conformidade com o que é arbitrário como determinação humana.

No mesmo conto, o pássaro diz que há um povo, os gangárides, que habitam a margem oriental do Ganges, que têm uma relação harmoniosa com outros animais (p. 60), e que os veem como semelhantes. Para eles, “é um crime horrível matar e comer seu semelhante”, evocando mais uma vez um olhar contemplativo sobre o encontro com uma realidade indiana.

Já em “As cartas de Amabed”, de 1769, sob a perspectiva do olhar humano para outros animais, Voltaire, que antagoniza a defesa do domínio humano sobre outros animais, traz uma história que reproduz uma perspectiva da superioridade do hinduísmo em relação ao cristianismo a partir da ação de um padre que em Kerala, na Índia, foi repudiado pela comunidade por matar dois franguinhos para comê-los. Esse apelo ficcional faz parte de uma série de escritos de Voltaire em que ele expressa sua rejeição à compaixão seletiva no seio do cristianismo.

“O diálogo entre um capão e uma franga”

Sobre a crueldade humana contra outros animais, um dos contos mais famosos de Voltaire é “O diálogo entre um capão e uma franga”, de 1763, que também integra a edição brasileira de “Pensamentos vegetarianos”. Os dois animais reclamam da crueldade humana contra eles e seus semelhantes. Em um momento, o capão diz à franga que eles são castrados para que engordem logo e para que a carne fique macia (p. 67). “[Para] nos comer? Ah, que monstros!”, lamenta a franga.

“É o costume deles. Eles nos aprisionam durante alguns dias, obrigam-nos a engolir uma pasta da qual eles têm o segredo, furam nossos olhos para que não tenhamos distração; finalmente, […], arrancam nossas penas, cortam nossa goela e nos assam” (p. 67-68).

O diálogo entre o capão e a franga em um determinado momento sugere que a violência dos humanos contra os humanos é previsível, considerando o que eles fizeram antes e ainda fazem com outros animais – numa associação de violências (p. 70), em que a banalização de uma favorece outra. No conto, Voltaire retoma, no personagem do capão, a influência não europeia na mudança de percepção sobre os animais na Europa. “[…] em um país chamado Índia, […], os homens têm uma lei sagrada que há milhares de séculos os proíbem de nos comer. Um homem chamado Pitágoras, tendo viajado entre os povos justos, trouxe essa lei humana para a Europa […]” (p. 70-71). Ao trazer isso, não se quer dizer que todos os indianos sigam esse preceito, mas sim que é um país onde há esse preceito e, também por sua própria antiguidade, há muito mais tempo do que em qualquer lugar da Europa.

Podemos notar também que Voltaire tem uma preocupação em reconhecer como filósofos mais dignos os que não se alimentam de animais, e também na sua ficção, já que em seus contos há também filósofos em que seus personagens se negam a chamá-los de filósofos exatamente porque não veem problema na perpetuação do mal contra outros animais – o que também surge mais como provocação do que sobre a negação de um reconhecimento no exercício da filosofia. “[…] os maiores filósofos da Antiguidade nunca fizeram churrasco de nós” (p. 72).

Também em “O diálogo entre um capão e uma franga”, Voltaire constrói uma crítica em torno do reconhecimento que a obra “Da abstinência do alimento animal”, de Porfírio, não recebeu. Em um momento, a franga questiona se Porfírio foi homenageado por sua preocupação com outros animais, defendendo que ele merecia um monumento.

“Não, caiu em desgraça aos cristãos que nos comem e que ainda hoje em dia detestam sua memória. Dizem que ele era ímpio e que suas virtudes eram falsas” (p. 72). Nessa passagem, Voltaire evoca uma espécie de assassinato de reputação que surge para tentar invalidar a contribuição de Porfírio em relação a uma nova forma de pensar a relação humana-não humana, e que mais uma vez ele atribui à apropriação da filosofia no contexto das conveniências do cristianismo. Mas esse não é o único conto em que a relação entre filosofia e cristianismo é colocada por Voltaire como problemática na consideração dos interesses dos animais não humanos.

O capão que evoca a consciência central de empatia pelos animais, enquanto a franga personifica a inocente surpresa, diz que os humanos se servem do pensamento apenas para autorizar suas injustiças (p. 74). “Imagine que, no pequeno país onde vivemos, é proibido nos comer em dois dias na semana. Sempre acham um meio de burlar a lei. Aliás, essa lei, que pode lhe parecer favorável, é cruel: ela exige que durante esses dias todo mundo coma os habitantes das águas. Eles vão procurar as vítimas no fundo dos mares e dos rios” (p. 74-75). A crítica da personagem ao consumo de animais aquáticos também é outro sinal da consciência de Voltaire muito à frente de seu tempo na consideração pelos animais.

O conto termina com o capão e a franga sendo enviados para o abate, mas não sem antes a franga fazer uma imprecação contra seus algozes: “Tomara que eu dê ao bandido que me comer uma indigestão que o leve à morte!” (p. 75). Na impossibilidade de prevalecimento dos interesses não humanos, é o que resta ao animal que ganha uma voz que surge também com a reação de Voltaire a uma mudança que não ocorre para mudar a vida desses animais.

“Não como mais carne”

Renan Larue lembra-nos que Voltaire escreveu sobre sua abstenção do consumo de animais em 1769. “Não como mais carne”, escreveu, por exemplo, para sra. Denis, sua sobrinha (p. 79), acrescentando que isso também excluía os peixes de sua alimentação.

No final do livro, Larue chama atenção para o silêncio dos especialistas de Voltaire sobre sua condenação do consumo de animais e a defesa de uma outra relação com os animais, não baseadas na violência e na morte. Não por acaso a relação do Voltaire com o que mais tarde seria chamado também de vegetarianismo, ainda é pouco conhecida e explorada, e Larue vê nisso também uma relação com os próprios preconceitos dos estudiosos de Voltaire, que preferiram ignorar essa parte.

“Em seus escritos, o vegetarianismo é uma ‘doutrina humana’ e até uma ‘admirável lei que proíbe comer os animais, nossos semelhantes. Em diversos ensaios e obras de ficção, ele se posiciona a favor dos padres da Índia, que recusam derramar o sangue dos animais, defende a compaixão pelos animais de matança, promove seus personagens vegetarianos à condição de protagonistas e, às vezes, deixa transparecer sua raiva contra a humanidade carnívora” (p. 81).

Nessa passagem, é notório que “carnívora” é ressignificado como o mesmo que “comer animais” e não como ter uma necessidade biológica de comê-los. Afinal, se carnívoros fôssemos, impossível seria viver sem a carne; o que sabemos que não condiz com a realidade, além de ser algo que já era defendido muito antes do início da era comum.

“A atitude dos críticos a respeito do vegetarianismo voltairiano traduz também e, principalmente, uma dificuldade em observar nessa prática questões que ultrapassam de forma ampla os hábitos culinários. A adoção desse regime – e ainda mais do veganismo – na verdade é condizente com uma violenta denúncia ao antropocentrismo; ela evidencia os limites da caridade dos cristãos (que recusam estender a benevolência além dos limites da humanidade) e torna necessário recriar a justiça fazendo da capacidade de sofrer o critério essencial da atribuição de direitos”, avalia Larue (p. 82-83).

A negação do carnivorismo como inerentemente humano é observada também na crítica de Voltaire:

“Primeiramente, não é verdade, Voltaire afirma, que a carne seja o alimento natural do ser humano, já que, com seus ‘fracos dentes’, e seu ‘frágil estômago’, ele ‘não poderia absolutamente, sem a arte de um cozinheiro digerir um frango’” (p. 84).

Em outra provocação, Voltaire observa em “Notas de Marsellais et Le Lion” que ninguém pode afirmar que não foram os humanos que foram criados para servirem de alimento para outros animais (realmente carnívoros), assim subvertendo a lógica antropocêntrica (p. 85).

Saiba Mais

Porfírio, a quem Voltaire cita várias vezes em suas obras a partir de 1761, foi influenciado por Plotino, sobre quem publicamos em “No século 3, Plotino reconheceu os sentimentos dos animais“, com referências à obra “Da abstinência do alimento animal”, de Porfírio.

Referência

VOLTAIRE. Pensamentos vegetarianos. 1. ed. São Paulo: Unesp, 2021. 102 p.

Leia também “Montaigne: Matança de animais é retrato da decadência humana“, “Pitágoras, o filósogo grego que condenou o consumo de carne“, “Para Empédocles, matança de animais é injustificável“, “Teofrasto: Explorar animais significa privá-los de viver” e “Apolônio de Tiana: Frutos da terra são isentos de violência“.

Jornalista (MTB: 10612/PR) e mestre em Estudos Culturais (UFMS).

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