A carne que não pertence à boca

Se coloca um pequeno pedaço de carne na boca, sente que a carne não pertence a esse lugar, que é um corpo atravessando outro corpo pela cavidade onde a morte encontra a vida, mas sem que haja uma partilha.

Mastigá-la e engoli-la é parte de um processo de supressão. Vem a estranheza de saber que o que desce não queria descer. Não dissocia, porque o pedaço vem de uma forma completa, de uma constituição de vida que já não consegue ignorar.

Sente-se na fronteira, entre o antes e o agora, e vê-se vencido pelo metamorfismo da vontade. “Não a escolhi, mas fui escolhido por ela.” Lembra das vezes em que sorriu comendo pedaços – pedaços que surgiam como se nunca tivessem sido nada além de pedaços.

“Quantos momentos bons?” A percepção muda. Quem foi, ficou. Sente gosto estranho na boca sem ter nada na boca. Só de imaginar. O preparo não muda. Mas e a recepção? Olha uma porção de fotos e não reconhece o prazer daquele comer. Pensa em como a comida nem sempre foi comida.

Jornalista e especialista em jornalismo cultural, histórico e literário (MTB: 10612/PR)

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