Por que é importante a referência a outros animais como não humanos

Talvez chegue o dia em que não precisemos mais falar em animais humanos e não humanos, por entendermos sim que todos somos animais

Foto: Selene Magnolia

Há algum tempo, li um artigo em um livro sobre ética animal em que a autora faz uma crítica do uso do termo animal não humano em referência aos outros animais. Ela justifica que faz parecer que exaltamos nós mesmos ao referenciarmos o outro como “não humano”, ou seja, “aquele que dizemos que não é humano, como se houvesse uma ausência ou incompletude”, vendo nisso sentido depreciativo do “não”.

Discordo dessa percepção, como já discordei também de apontamento similar feito por Frans de Waal no livro “Somos inteligentes o bastante para saber quão inteligentes são os animais?”. Para ele, é como dizer sobre as outras espécies: “Coitadas, elas não são humanas!”

Mas o termo “não humano” não é usado com esse propósito pejorativo. Creio que essa interpretação só seria oportuna se vivêssemos em um mundo em que nos reconhecêssemos de forma não supremacista como animais – prescindindo da acentuação da referenciação.

Ademais, ainda há o predomínio de uma forte crença de que “os animais” são os outros, e isso continua sendo reforçado nos discursos que reproduzem o excepcionalismo da dicotomia “nós e eles”, “humano e animal”.

É como se ser “humano” fosse a referência e ser “animal” a deficiência – a limitação, a incompletude do ser que consiste no outro e que nele o que vejo é ausência das qualidades que reconheço em mim. Portanto, podemos estabelecer divisões e fronteiras que também devem ser não só mediadas, mas controladas e submetidas às determinações humanas.

Talvez chegue o dia em que não precisemos mais falar em animais humanos e não humanos, por entendermos sim que todos somos animais, mas não da forma como isso é comumente percebido hoje.

Ou seja, sem parecer que animais são somente os outros, mas até lá acho sim importante referenciar o animal humano e não humano, pela necessidade de associação com a especificidade de que todos somos animais.

Quando fala-se em animal não humano, deixamos claro que não devemos ignorar que há também o animal humano, que somos, se não houvesse não falaríamos em “animal não humano”. A separação não está nessa referenciação, mas em seu oposto, que é excepcionalista. É uma forma também de acostumar essa percepção em que somos condicionados a não pensarmos em nós como animais.

Afinal, se há o animal não humano é porque devemos pensar em nós mesmos como animais humanos, não somente como humanos, como se nisso houvesse uma animalidade abstraída no chamado processo de evolução – a equivocada crença de que “não somos animais e sim fomos animais” ou “que somos um animal do tipo não animal” ou que nunca fomos animais, como muitos criacionistas chegam a defender.

Claro que somos ensinados que também somos animais, o tal do debatível e exclusivista “animal racional”, que é forma arbitrária de estabelecer a ideia da “racionalidade”, já que outros animais também têm níveis de racionalidade.

Como já lembrava-nos Darwin no século 19, nossa diferença em relação aos animais que chamamos convenientemente de “irracionais” é de grau, não de tipo. A separação não está no “animal humano” e “animal não humano”, e sim no “animal” e no “humano”, no costume e na conveniência divisionista.

O termo “não humano” não existe para inferiorizar outros animais, enquanto comumente excluir-nos da consideração comum de “animais” é atribuir ao sentido de animal uma ideia que continua não sendo somente sobre diferenças, mas como já citei, características percebidas e submetidas como se fossem deficiências.

Ainda somos muito influenciados pela ideia ocidental de que o ser humano é a superação do animal, e por isso se reconhecemo-nos como animal o fazemos por uma crença de que o deixamos lá atrás, num período controverso e abstrato, e como se a animalidade humana fosse não mais que uma referência, um olhar para o passado.

É como dizer que o animal é quem nunca fomos, enquanto os outros são involuídos, expressão clara do ser animal. Isso ocorre porque associamos à ideia do animal atribuições que possam situá-lo num espaço que não é o nosso próprio, mas que sobre ele temos controle.

É algo que surge exatamente para reforçar a crença de uma aproximação que é também distanciação – porque, por exemplo, usamos animais pela ideia da distância estabelecida. Enquanto não pensarmos com naturalidade em nós também como animais, e de forma que supere a conveniência, defendo a validade do termo “animal não humano”.

Leia também “Ideia da irracionalidade animal favoreceu a exploração não humana”e “Direitos animais não são sobre privilégios para não humanos”.

Jornalista e especialista em jornalismo cultural, histórico e literário (MTB: 10612/PR)

2 respostas

  1. “Animais de outras espécies” ou “indivíduos de outras espécie” também pode ser uma alternativa. Evoca o fundamento biológico que nos coloca na mesma condição vital e de eventual diferenciação que “os outros” animais.
    Usar o termo “animal racional” para referenciar “o humano” é deveras pedante.
    O próprio Darwin, no livro “A expressão
    das emoções no homem e nos animais” usa o termo “animais inferiores” para se referir às outras criaturas que não são humanas, apesar de o autor ter contribuído para uma reflexão que fosse além e contrária à premissa cartesiana de que indivíduos de outras espécies são autômatos e coisas sem sentimentos, infligindo-lhes dor e angústia e negando-lhes o direito ao não sofrimento.

    1. Realmente Darwin fez isso. Era muito comum a referência a outros animais como “inferiores”, principalmente no Ocidente, e mesmo entre aqueles que no século XIX influenciaram o que viria a ser chamado de direitos animais. Henry Salt também usava termo semelhante.

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