Não coma carne na Quaresma e em nenhum outro dia

Na Páscoa, é usual o consumo de peixes. Mas não seria o peixe um ser carnoso? Assim como o boi, o porco, o frango? (Acervo: Shutterstock/Getty Images)

Para os cristãos católicos, a Páscoa é uma data de extrema importância que celebra a ressurreição de Cristo três dias após a sua morte por crucificação. A Páscoa também é definida por teólogos do mundo todo como uma “esperança viva” atribuída por Deus. Ou seja, uma data propícia para a restauração da fé em um mundo mais auspicioso, justo e misericordioso.

Não seria o peixe um ser carnoso?

É no período que antecede a Páscoa que os cristãos católicos se abstêm de “carne” – na realidade, quase sempre carne vermelha, e jejuam principalmente na Quarta-Feira de Cinzas e na Sexta-Feira Santa. No entanto, é usual o consumo de peixes. Mas não seria o peixe um ser carnoso? Assim como o boi, o porco, o frango?

De fato, e com níveis de senciência e consciência equiparáveis aos dos mamíferos, segundo o artigo “Fish Intelligence, Sentience and Ethics”, publicado na revista Animal Cognition. Mas, claro, não precisamos de pesquisa alguma para concluir que um peixe sofre antes de morrer – basta testemunhá-lo se debatendo fora d’água enquanto é violentamente vitimado por asfixia.

Equívoco da ideia de um “jejum de carne”

Porém, é importante ressaltar tal fato porque exemplifica o equívoco da ideia de um “jejum de carne” nesse período – algo tão propalado por tanta gente que ignora o fato de que o peixe também é um ser carnoso repleto de vida e interesse em não sofrer e morrer de forma precoce.

De acordo com o padre Paulo Ricardo, o jejum no período de Páscoa é uma prática plurissecular que mostra aos cristãos católicos a importância de uma vida de ascese. Ou seja, o jejum do consumo de animais, desconsiderando o peixe, é uma forma de alcançar a virtude da temperança, “uma virtude moral que modera a atração pelos prazeres, assegura o domínio da vontade sobre os instintos e mantém os desejos dentro dos limites da honestidade.”

Se o jejum de carne é uma virtude moral, por que não ampliá-lo?

Mas se o “jejum de carne” representa algo em tão alta estima pelos cristãos católicos, sendo apontado como uma grande virtude moral, por que não se abster completamente desse consumo, e não apenas no período de Páscoa? Por que não incluir os peixes nessa abstenção fundamentada na virtude moral, já que eles também são animais?

Como também são sencientes, será que não inspiram a misericórdia da renovação da fé cristã? O exercício da violência contra outras espécies não é inclemente, em oposição ao desejo de um mundo justo e misericordioso?

É compassivo endossar violência contra outras espécies?

Francisco de Assis, uma referência para milhões de católicos do mundo todo que se alimentam de animais, dizia que “todas as criaturas são nossos irmãos e irmãs”, e que eles não são seres com menos direito à vida do que os humanos – tanto que ele compartilhava suas pregações com pessoas e animais. Discursava que o seu amor por Deus manifestava-se por meio de seu amor e respeito por criaturas humanas e não humanas.

Independente de seus hábitos alimentares, não seria hoje uma mensagem de que não devemos endossar a violência contra outras espécies? Animais que domesticamos e tornamos vulneráveis para atender aos prazeres que não controlamos? À volúpia do paladar?

Reprimindo as concupiscências da carne

Embora símbolo inquestionável do antropocentrismo no seio da civilização cristã ocidental, Tomás de Aquino escreveu na “Suma Teológica” que “o jejum [de ‘carne’] foi estabelecido pela Igreja para reprimir as concupiscências da carne, cujo objeto são os prazeres sensíveis da mesa.”

Mas não é isso que a maioria dos cristãos faz o ano todo, quando se alimentam de maneira desnecessária de animais? Claro, para além da questão da virtude moral vaticinada pela Igreja Católica, sabemos que o consumo de carne não é essencial à vida; basta considerarmos a existência de veganos e vegetarianos saudáveis.

Sendo assim, resta-nos uma conclusão – não há nada de nobre e equânime em comer animais porque representa a primazia do paladar, ou seja, os “prazeres sensíveis da mesa”, que normalmente as pessoas não controlam por condicionamento, hábito e conveniência.

Jornalista e especialista em jornalismo cultural, histórico e literário (MTB: 10612/PR)

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