Acidentes com animais, um pesadelo na MG-424

Para o tenente Muniz, além da conscientização do cidadão, é de suma importância que haja envolvimento das prefeituras da região (Foto: Brasil Sem Tração Animal)

O número de acidentes envolvendo animais silvestres nas rodovias brasileiras é um problema grave e bem conhecido, com estudos e estimativas publicadas por instituições e órgãos governamentais. Hoje, campanhas e projetos de leis tentam minimizar ou resolver a questão, já que o progresso acabou por invadir o habitat de muitas espécies que, quase sempre, acabam se tornando vítimas fatais de atropelamento.

De acordo com o CBEE, em pesquisa divulgada também pelo UOL em 2018, estima-se que 475 milhões de animais são atropelados a cada ano nas rodovias brasileiras. De acordo com a Polícia Rodoviária Federal, em 2017, ocorreram 2,6 mil acidentes em rodovias federais envolvendo a presença de animais na pista, sendo 434 graves, com 103 mortes.

Menos grave não é o que ocorre nas rodovias estaduais, como em Minas Gerais, que rodeadas por áreas rurais registram acidentes envolvendo animais de grande porte domesticados e explorados pelo homem como cavalos, bois e vacas que acabam tendo acesso à margem dessas estradas. Há aqueles que são abandonados por irresponsabilidade e negligência de seus “tutores”, que em muitos casos, acabam isentos de qualquer apontamento ou responsabilização pelos acidentes causados.

A rodovia MG-424, por exemplo, que cruza importantes cidades mineiras, como Sete Lagoas, Capim Branco, Matozinhos, Confins, Vespasiano, São José da Lapa, Pedro Leopoldo e Santa Luzia, tem sido palco constante de um espetáculo macabro de acidentes que ceifam vidas humanas e não humanas como noticiado com frequência pela mídia e, denunciado por Ongs, associações e ativistas em suas redes sociais, não contando, claro, com os casos evitados pela atuação da Polícia Militar Rodoviária que retira diariamente animais das estradas.

“A Polícia Militar Rodoviária faz o patrulhamento, diuturnamente, recebendo denúncias, e as equipes buscam um local adequado pra tocar esse animal, mas ele acaba voltando pra rodovia”, explica o tenente André Muniz, que ratifica que cabe ao cidadão reforçar e fazer vistorias diárias em suas cercas, porque quando os animais alcançam as estradas, acidentes graves acabam acontecendo, em muitos casos com vítimas fatais.

Necessidade de políticas públicas 

Vale ressaltar que quase sempre cabe à sociedade civil se mobilizar para prestar socorro às vítimas não humanas, já que grande parte dos municípios não possui políticas públicas voltadas ao seu socorro. “Somos chamados pela Polícia Rodoviária, informados por seguidores e acionados pelo grupo de resgate UNI BH, coordenado pelo professor Aldair ou, até mesmo, em outros casos os acionamos para apoiar os resgates dos animais na MG-424”, explica Fernanda Braga, presidente da associação Brasil Sem Tração Animal.

Para o tenente Muniz, além da conscientização do cidadão, é de suma importância que haja envolvimento das prefeituras da região, de modo a estabelecer um convênio com a Polícia Militar e Departamento de Estradas de Rodagem (DER) para que os animais encontrados vagando pelas estradas possam ser recolhidos e destinados a locais distantes das autopistas. “O ideal também seria um consórcio entre municípios com um curral central ou regional que pudesse manter o recolhimento destes animais, porque este problema que a gente encontra aqui é muito sério”, ratifica.

“Hoje [21 de julho] teve um atropelamento de animal na altura do quilômetro 3, da MG-424, onde chegamos a acionar a Zoonose, porém, ele morreu no local. Ontem [20 de julho] teve atropelamento de outro animal. A gente enfrenta esse problema e, se não tiver envolvimento de outros órgãos, só a Polícia Militar não consegue dar solução pra isso.”

O vereador de Vespasiano, Filipe Caldeira, reconhece que esse é um grande problema que precisa ser enfrentado, principalmente em seu município que ainda não possui uma lei abrangendo animais de grande porte. Contudo, o parlamentar ressalta que não é uma responsabilidade somente do município de Vespasiano, mas do estado e dos municípios que integram a região, uma vez que a MG-10 e a MG-424 que fazem limite com a cidade são controladas pelo DER. Por isso, além da proposição de penas e multas para aqueles que deixarem animais em situação vulnerável de maus-tratos e abandono, o parlamentar defende a criação de um consórcio que conte com a aceitação e união dos vereadores, prefeitos e população dos municípios adjacentes, já que os custos são altos para ter um abrigo e cuidar desses animais.

Ao que tudo indica, o desejo do tenente e vereador parece que se tornará realidade. Um consórcio intermunicipal está em andamento, promovido entre municípios margeados pela MG-424. O presidente da comissão criada para resolver o problema que vem gerando grande indignação na população é o prefeito de São José da Lapa, Diego Alvaro dos Santos. A Vegazeta tentou contato com Diego para saber mais detalhes sobre o andamento e previsão das ações como, por exemplo, o destino dos animais resgatados, mas até o fechamento desta matéria não tivemos retorno ao pedido de entrevista.

Dor, indignação e impunidade

O veterinário, professor e resgatista Aldair Junio Woyames que dedica sua vida ao socorro de animais em situações de risco e desastres, viveu na pele a dolorosa experiência de perder um ente querido na MG-424 em maio deste ano, quando a moto conduzida por seu irmão, Rogê Medeiros Pinto, se chocou com uma égua e seu potro, completamente soltos na via. Os ferimentos decorrentes do forte impacto acabaram causando o falecimento de Rogê dias depois no hospital. Aldair, vale elucidar, ainda prestou socorro à égua, que também acabou não resistindo aos ferimentos e veio a óbito no local.

Mas e o “tutor”? Ninguém sabe, ninguém viu!

O tenente André Muniz reforça que em muitos desses acidentes, a Polícia Militar Rodoviária não consegue identificar quem é o real tutor do animal, ficando o caso sem solução por não haver como atribuir responsabilidade cível e criminal.

“A gente não consegue acompanhar a origem desses animais, o histórico/precedente, porque a gente, praticamente, nunca localiza o tutor desses animais. Mas tudo nos leva a pensar em duas situações: animais abandonados, mas, isso seria uma minoria, dado o estado em que são encontrados; e animais que são soltos pelos próprios tutores. Eles soltam o animal para pastar ou qualquer outro motivo; não fazem um controle, não protegem, não cuidam da segurança dos animais e da segurança das pessoas que estão nas rodovias”, diz Fernanda Braga.

“A gente sabe que ali [MG-424] é uma região que tem um grande número de animais na pista, e tudo nos leva a acreditar que por omissão dos municípios, por não haver fiscalização, por não haver punição, por não haver uma regulamentação, como o cadastro dos animais. É muito difícil responsabilizar os tutores porque eles não são encontrados. Quando o animal é apreendido, geralmente, eles não vão nem lá na Polícia Rodoviária para pegar o animal de volta.”

Neste contexto, o advogado brasiliense José Moura Neto, especialista em direito administrativo, ratifica que se deve perceber que o problema poderia ser resolvido por meio de uma lei que obrigasse os responsáveis pelos animais a “chipá-los”, porque dentro deste cenário o estado e os atingidos pelos acidentes poderiam ser ressarcidos pelo evento danoso.  “A primeira punição poderia vir por uma multa prevista em legislação municipal ou estadual, pois o chip conseguiria relacionar o proprietário do animal, o que faria com que o crime de abandono não caísse na cifra negra da criminalidade, porque, como é de conhecimento de todos, os animais abandonados nas ruas nunca têm dono e, por essa razão, seus ‘tutores’ nunca são punidos com o rigor da lei”, explica Moura.

Reconhecimento dos animais como sujeitos de direitos

Se a punição para os responsáveis que abandonam animais nas estradas é um consenso, em Minas o compromisso tem um valor ainda maior, já que a responsabilização pelos danos causados às vítimas humanas precisa ser acompanhada também pela responsabilização dos danos causados às vítimas não humanas, já que o estado, desde dezembro de 2020, por meio da lei 23724/20, do deputado estadual Osvaldo Lopes, reconheceu todos os animais como sujeitos de direitos. Isso faz com que, para além do recolhimento do animal nas rodovias, para que não se envolva ou cause acidentes aos indivíduos humanos, o estado deve salvaguardar esses animais, buscando protegê-los e resguardar sua dignidade. Ou seja, para além de conduzi-los a currais ou espaços que os retirem da zona de conflito é responsabilidade do Executivo proporcionar uma vida digna, seja por meio de adoção responsável ou tutela do Estado.

Para Fernanda Braga, é preciso tratar a questão com seriedade porque pessoas e animais estão morrendo. “Porque hoje sabemos, infelizmente, que na maioria dos casos, o animal quando sobrevive é devolvido ao tutor mediante uma multa que não cobre nem os custos do recolhimento ou apreensão. E sabemos também que quando tutores não são responsabilizados e, assim tem sido nos casos da MG-424, os animais ou acabam sendo assumidos por instituições como o Brasil Sem Tração Animal, que tem que arcar com todas as despesas, uma vez que as prefeituras não têm política alguma, nada, nem veterinário especializado. Em alguns lugares, os animais vão parar em currais municipais, onde têm baixíssima qualidade de vida e acabam sendo leiloados. Aqui em Minas Gerais há leilão de animais, mesmo sendo sujeitos de direitos em nosso estado. Então a gente precisa tomar muito cuidado com isso. Os trabalhos voluntários podem e devem ser realizados para que o direito do animal seja garantido, para que deem apoio e educação animalista, para que haja capacitação, esclarecimento e conhecimento quanto ao trabalho; para que ocorram boas adoções, mas não é certo que as instituições, que as ongs, os movimentos e as associações tenham que pagar por isso enquanto o tutor do animal fica impune e continue deixando isso acontecer.”

O deputado estadual Osvaldo Lopes acrescenta que estamos avançando nesta frente, com estudos, pesquisa e conquistas importantes e aproveita para citar outra lei que surgiu a partir de uma proposição sua – 11.285/2021, que viabiliza a gradual substituição de veículos com tração animal, como as carroças, por veículos motorizados em Belo Horizonte. De acordo com o deputado, isso reduzirá grande parte dos maus-tratos contra equinos, principalmente quando os animais não são capazes de transportar carga como antes. Entretanto, ele reconhece que a ação não é suficiente diante do macro desafio.

“Sou adepto da filosofia de que o diálogo leva a evoluções. Proponho, frequentemente, reuniões voltadas para debatermos o assunto. Chegaremos a melhorias concretas nesta questão, e me comprometo a ser um agente ativo e construtivo nesse processo” assegura o deputado.

Fica a pergunta: Até quando vidas humanas e não humanas serão perdidas nas rodovias por negligência e ausência de políticas públicas consistentes que deem condições dos tutores serem identificados e devidamente punidos?

Saiba Mais

A cifra negra, mencionada pelo advogado José Moura Neto, faz parte de duas expressões, que seriam os crimes de Cifras Negra e Cinza (PADUA, 2015). A Cifra Negra estaria diretamente relacionada a crimes que não são registrados, junto às autoridades policiais e, que, por isso, não integram as estatísticas criminais e, a Cifra Cinza trataria de crimes que foram registrados junto aos órgãos policiais, mas que não geram processo nem ação penal em decorrência da sua resolução na própria delegacia, ou por desistência da vítima em continuar a acusação. O abandono de animais acaba integrando a primeira.

Links relacionados:

https://www.cnm.org.br/cms/biblioteca_antiga/Cons%C3%B3rcios%20p%C3%BAblicos%20intermunicipais%20-%20Uma%20alternativa%20%C3%A0%20gest%C3%A3o%20p%C3%BAblica.pdf

https://g1.globo.com/mg/minas-gerais/noticia/2021/06/22/carreta-atropela-e-mata-cavalo-na-mg-424-na-grande-bh.ghtml

https://noticias.r7.com/minas-gerais/balanco-geral-mg/videos/dois-cavalos-sao-atropelados-em-rodovia-de-vespasiano-mg-10032021

http://pedroleopoldo.mg.gov.br/?p=8224

https://www.otempo.com.br/cidades/motociclista-fica-em-estado-grave-apos-atropelar-cavalo-na-mg-424-em-vespasiano-1.2485908

Daniela Sousa é responsável pela assessoria de comunicação do movimento Brasil Sem Tração Animal e Direito Animal Brasil (Dabra).

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