Animais são invisíveis nos açougues

Fotos: Pixabay/Aitor Garmendia/Tras Los Muros

Animais são invisíveis nos açougues. Não estão lá, e se estão, também não estão. Quem vê? Quem não vê? Morto é inexistência que começa na encetadura da vivência. Se andam ou movem-se, não são o que são, e quando não andam ou movem-se, também não. Então quando são?

Invisibilidade é precedência, precessão, porque o não ser, reforçado pelo não ver, vem antes da matéria viva; muito antes não apenas a um nascimento que posso testemunhar agora, quando uma cria, que mais tarde será vendida e comida ou explorada para fim, que numa fabulação simpática aos olhos também é ruína, é acolhida pela mãe num primeiro contato com o mundo.

Então é reconhecida pela família, por semelhantes, se também estão ali, mas não pelo animal humano, não como é, como querem e determinam que seja, que é não ser, não estar, não viver, numa ordem de anulamentos que são caminhos do perecer.

Apresentação, duração e fim das interações sociais são frações da descaracterização não humana, dum afastamento que é parte anfêmera do processo de produtificação. O conhecido submerge no desconhecido e torna-se parte dele na perda de si mesmo.

Supressão ou cessação da primeira infância também é parte duma captura de essência que é manto de invisibilidade, de destituição e neutralização de características e comportamentos que levam a um desconhecimento e embrutecimento, que vem do estímulo e da flama humana, e culminam em atitudes estranhas, sofríveis e obliterativas.

Penso na questão da anterioridade geracional e gestacional, e pergunto-me quantas gerações duma criatura exposta no açougue tiveram mesmo destino, e viveram tão pouco. E seus descendentes? Menos ainda viverão num mundo sem freios à alarvaria, ou seja, a brutalidade e glutonaria. Belo é um pedaço de matéria morta servida a gosto à base de contragosto?

Observo partes de corpos bem dispostas, fatiadas na tradicional despersonalização oscilante. Das coisas que eram alguéns, há o moído, menos perceptível, pelo aspecto caótico, esteticamente desagradável e sua crueza, às partes de membros inteiros e pequenos animais com seus corpos gelados, posicionados de maneira que dão ideia de um descanso – como se pudessem acordar a qualquer momento. Esta última percepção, minha, não nego.

Ninguém olha e chama de alguém. Falam “carne de porco”, “carne de frango”, “carne de boi”, sem pensar num animal como é, não como julgam que são, na convencional destituição; só numa conexão com um tipo mastigável que evoca uma cor, textura ou prazer do esquisitório e convencionado comer.

Reúnem partes que são como estágios e gradações da corroboração das inexistências. Os prazeres garantem o trabalho e a velocidade dos disparos e das lâminas. Filas nos matadouros andam com as filas nos açougues, e cada corte numa carne morta depende dum golpe numa carne viva que sangra.

E lá estão os invisíveis que humanos dizem não queixosos de seus próprios fins, mas estes humanos abominam uma troca eventual de lugar pela experiência que afirmam ser forma “indolor” de morrer, porque não querem o tratamento que vem da invisibilidade daqueles. Quem desejaria?

Nem cogitam amontoarem-se em jejum num caminhão ou serem submetidos em grupelho num banho de aspersão. Que tal um pouco de choque? Estoque? E deitar em fezes contra a própria vontade numa carroceria imunda? Talvez um disparo de leve no crânio, em região que não atinja o cérebro? Jamais!

Imagino humanos a caminho do matadouro, não para serem abatidos, somente mantidos numa carroceria, onde dividirão o espaço com animais a caminho da morte, e perceberão, com pequeno esforço, que do lado de cá poucos importam-se com os do lado de lá.

Isto é invisibilidade, não importando questões de complexidade e particularidades da senciência, consciência ou um fato inegável por qualquer criatura humana – dentro desses animais também habita um coração, por mais curta que seja a duração, determinada e financiada pela apetência.

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Jornalista e especialista em jornalismo cultural, histórico e literário (MTB: 10612/PR)

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