Um animal deixado para apodrecer

Seria reduzido a alimento e partes de seu corpo se transformariam em insumos de produtos (Acervo: Deposit Photos)

Encontrei um jovem animal morto à sombra de uma sete-copas, deixado para apodrecer. Seria reduzido a alimento e partes de seu corpo se transformariam em insumos de produtos nas seções de higiene e limpeza dos mercados. Que contradição, a morte alimentando, higienizando, limpando e purificando. É assim. Ajoelhei-me e analisei cada parte de seu corpo. Ninguém o moveria.

Havia manchas com formas humanas. Estava diante de um animal dantes doente, de olhos amarelecidos. “Hum…me lembra um senhor com cirrose hepática.” Mas aquele animal não tinha vícios. Por que amargar tal desgraça e punição? Nos olhos, não me vi. Só uma imagem imota de alguém erguendo um facão para golpear fatalmente a garganta. Sem emoção, sem consideração, só o vácuo da degradação.

O sangue que já não descia se entranhou no solo e fez brotar plantinha felpuda. Encostei o dedo, gemeu; gemeu com a voz que não mais pertencia ao animal desfalecido. Só ela, somente ela sobrevivia naquele cenário. O solo onde o falecido não seria sepultado encaiporou. Esgotado. Tudo morria diante de mim, menos a plantinha. Sentei, levantei a cabeça do finado e massageei seus pelos. Macio e mortiço.

Ele não reagia, mas a plantinha vibrava, como se sentisse minhas mãos afagando-lhe com préstimo. Suas folhas cresciam e fremiam cada vez mais. Continuei massageando o topo de sua cabeça. Cresceu muito. Já não era plantinha, virou árvore. Um de seus galhos lançou-me sobre o ponto mais alto.

Equilibrei-me recuando o corpo, a cabeça e procurando o animal no solo estéril. Tinha desaparecido. Em um raio de quilômetros as pastagens foram engolidas pela terra. Mais plantinhas felpudas nasciam e gemiam; vozes de animais que sucumbiam.

Jornalista e especialista em jornalismo cultural, histórico e literário (MTB: 10612/PR)

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