No romance “Viagem ao Fim da Noite”, do francês Louis-Ferdinand Céline, há uma votação para que um grupo escolha um lugar para se proteger de possíveis ataques aéreos durante a Primeira Guerra Mundial, quando a Alemanha já havia invadido a Bélgica e a região francesa da Alsácia.
O resultado da votação é que, de todos os porões onde eles poderiam se esconder, a maioria dos votantes opta por se abrigar no porão de um açougueiro. Segundo o anti-herói Ferdinand Bardamu, alegava-se que era mais profundo do que qualquer outro do prédio.
“Já na soleira da porta chegava até você o bafo de um cheiro acre e de mim bem conhecido, que me foi no mesmo instante absolutamente insuportável” (2009, p. 92). Bardamu tinha tanta aversão à carne, e pelo que essencialmente é, que ele preferiu não se abrigar no porão de um açougueiro, que também era o local onde ocorria o abate dos animais.
“- Você vai descer lá para baixo, Musyne, com a carne pendurada nos ganchos? – perguntei. – Por que não? – respondeu-me, um tanto espantada. – Bem, eu – disse -, eu tenho minhas lembranças e prefiro voltar lá pra cima…- Então você vai embora? – Você vem me encontrar assim que isso acabar! – Mas pode durar muito tempo…- Prefiro esperar você lá em cima – foi o que eu disse. – Não gosto de carne, e logo isso estará terminado” (2009, p. 92).
Bardamu em vários momentos traz uma relação entre humano e não humano. Sua aversão à carne também é intensificada pelos corpos humanos e não humanos (cavalos) que ele vê deformados e destruídos durante a guerra e da qual também, como francês, participa (alguns dos mortos eram seus companheiros) e chega a um momento em que seu único interesse é não mais participar dela.
Podemos concluir isso a partir da dubiedade da seguinte revelação que pode ser tanto sobre o que precede a guerra quanto o que decorre dela: “Bem, eu tenho minhas lembranças […]”. Se tem algo que no vazio da vida deixado pela morte Bardamu tanto testemunhou como oficial menor foi uma grande quantidade de corpos e da exposição da carne desses corpos.
Se ele já não gostava de carne, isso então, embora não seja causa, torna-se agravante. Antes e depois do episódio sobre os porões, Bardamu traz várias referências sobre a realidade humana que remetem à realidade de outros animais, como os trânsitos que ele cria ao utilizar termos comuns da violência contra outros animais aplicando-os a humanos – abate, matadouro, etc.
Se nisso há uma evidência da banalização da vida humana a partir do que ele testemunha e impacta sobre ele, por que não pensar também na violência contida nesses termos em seu uso comum e normalizado? Que é realidade ordinária e institucionalizada de tantos animais. A aversão à carne de Bardamu reflete um incômodo em que o que é humano não afeta somente o que se sente em relação ao que é humano.
O que o anti-herói Ferdinand Bardamu traz como experiência e percepção em “Viagem ao Fim da Noite” pode fazer pensar não apenas sobre a realidade humana como não humana (o humano tratado como não humano) como permitir uma reflexão sobre o corpo e a carne em si, independentemente de espécie; porque Bardamu rompe essa distinção também quando o incômodo em relação a uma evoca e intensifica o incômodo em relação à outra.
Nisso então é propiciado um embate mesmo que não planejado com o que é determinado pelo especismo. Afinal, a guerra não é um evento humano em que a vida humana é banalizada? Basta considerarmos os discursos em que o superior de Bardamu não expressa mal-estar pelo fim de seus comandados. O que importa para ele é somente avançar.
E que vidas são mais banalizadas no cotidiano, e sem que essa banalização seja vista como reprovável pela maioria, do que a de animais enviados para o matadouro? Podemos lembrar que Élisée Reclus, também francês, comparou o massacre do gado com a guerra no seu ensaio “À Propos du Végétarisme”, de 1901, ao perceber a exploração de animais para consumo como uma guerra do ser humano contra outros animais.
Outra reflexão possível a partir de “Viagem ao Fim da Noite” é que por não gostar de carne Bardamu rejeita o espaço de onde ela vem para estabelecer relação direta com o consumidor. Porém mesmo pessoas que gostam de carne, comumente não têm interesse nesse espaço ou em se inteirar sobre ele. Isso é favorecido pelo que o psicólogo Leon Festinger definiu em 1957 nos EUA como dissonância cognitiva.
Mas na afirmação de Bardamu do não gostar de carne como argumento para não estar lá, ele evoca a concretude das relações que possibilitam a disponibilidade da carne – como as decorrentes da matança.
Referência
CÉLINE, L.F. Viagem ao Fim da Noite. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 536 p.
Leia também “Élisée Reclus e um olhar sobre a exploração animal no Brasil em 1883” e “Reclus: alimentação humana é baseada no massacre de animais“.
2 respostas
A gente não vive só. Precisa estar sempre presente a outras vidas que tem o mesmo direito a vida. Seria tão bom olhar para a nossa natureza, e ver que tudo que temos, faz parte da nossa natureza assim como um todo.
Os animais faz parte da nossa natureza. O ser humano além de se preocupar com ele mesmo, acha que é dono da verdade. O nosso Planeta está ruim por causa da teimosa que é insuportável em relação aos nossos anjos animais.