Boi marcado para morrer

Assim que Milovan levantou a marreta para golpear o boi, ele recuou (Acervo: Angela van Leeuwen)

A boiada desceu do caminhão. Alguns animais sentiram cheiro nauseoso e acidulce. Resistiram a entrar em um corredor estreito por onde ninguém retornava. Um dos campônios começou a assobiar para sopitar e docilizar os bovinos. Serenaram. O primeiro da fila manteve olhar hirto e esfíngico em direção ao paroleiro. Nenhuma palavra, nenhum sinal. Se distanciou dos companheiros e seguiu rumo à caixa enquanto os outros aguardavam a metros de distância.

Assim que Milovan levantou a marreta para golpear o boi, ele recuou. O animal abriu a boca e cuspiu um pedaço de papel: “O assobio da morte é a lorpa tirania do mais forte.” O homem fitou os olhos do boi e arredou. Sim, sei que você vai matar a mim e aos meus companheiros. Não vou resistir — disse.

“Quê? Como você tá falando?” Isso não importa. Vou te contar a história de Djordje, o Carrasco de Negotin, um sujeito bamba. Assim como você, ele também vindimava a mando dos outros. Até que um dia, quando se aposentou depois de matar animais como eu e meus companheiros ao longo de 30 anos, Psoglav apareceu para cobrar uma dívida — relatou.

“Que dívida?” As vidas que ele tirou. Para cada animal que ele matou, Psoglav levou um de seus descendentes. E quando não restou mais nenhum deles, o perdoou e disse que seus últimos anos seriam de reparação — explicou.

O Carrasco de Negotin perguntou por que punir ele e não quem o pagou:

— Todos são penalizados, no meão ou na cessação da vida. Quem te pagou deixou de existir há muito tempo, você sabe. Não comprou apenas seus serviços, mas também a supressão da sua vocação humana. Você não teria morrido de fome se não tivesse aceitado esse trabalho. Eu o conheço. Em algum nível, você aprendeu a gostar do que fazia, um tipo de acromania e, mesmo que não tivesse gostado, nada impedia-te a partida. A existência pautada na morte é estéril, baldada, mesmo para quem não a enxerga.

Djordje aquiesceu e Psoglav se desvaneceu.

Abaixou a cabeça, toldou os olhos, aguardou a marretada. Milovan a colocou no chão e assistiu o boi caminhar em direção à saída. O corredor alvoreceu e a boiada desapareceu.

Jornalista e especialista em jornalismo cultural, histórico e literário (MTB: 10612/PR)

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