Caiu da carroceria a caminho do abate

Foto: Flavia Morlachetti/Westend61

Caiu da carroceria a caminho do abate. Não estava fugindo. Não havia interesse em fuga. Não sabia pra onde ia. Sentiu o impacto da rodovia, uma dor que não conhecia.

Mancando, levantou e continuou correndo, com corpo torto, declinado dum lado – e veículos desviando e buzinando. Queria alcançar o caminhão que levava embora seu mundo.

Criaturas como ele, com quem convivia, onde encontraria? Não pensou nisso. Só correu, balindo, sentindo fome e sede. Caminhão sumiu e sua referência de estar no mundo desapareceu.

Meses. Uma vida juntos, que não é vida, mas início, sem meio, que pula direto para o fim, o que virou? Um desconcerto, décalage, assincronia. E já não era em essência, quando o ciclo de vida é preterido por glutonaria?

O que fazer? O que não fazer? Instinto doméstico dilui-se tão rápido. É o conveniente despreparo sistemático. Mais um animal criado para não sobreviver sem o jugo que pesa sobre sua pele, sua vida, sua morte, sua carne.

A silhueta destacando inconformidade foi coberta pela poeira deixada pelos veículos mais pesados. De longe, parecia criança, e era, não do tipo que sobressai-se aos interesses do consumo, mas que dizem: “Carne tenra, belo tapete. Agora ou depois.”

Parou, olhou de um lado para o outro e, mesmo cansado e machucado, continuou correndo. Sim, persistiu no objetivo, o caminhão, ainda que não existisse mais diante de seus olhos. Então queria morrer? Não, queria viver.

E viveu, como único sobrevivente dum grupo que desvaneceu entre garfos e facas.

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Jornalista e especialista em jornalismo cultural, histórico e literário (MTB: 10612/PR)

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